Castaneda narra neste capítulo de “O Lado Ativo do Infinito” novamente detalhes do encontro com dom Juan na estação rodoviária de Nogales, coisa que o já fizera de várias formas nos livros anteriores, e sem com detalhes esquecidos. A impressão de ser um índio idoso quase caduco, modificou-se demais na segunda visita de Carlito. Neste capítulo ele descreve o aspecto de dom Juan, a questão de ´ser feiticeiro´ acabando com os preconceitos sobre o tema, a linhagem dos naguais, a temática do Infinito como força ativa, o espírito, o mar escuro da consciência e a temática do guerreiro-viajante. (Vicente Medrano – Dinarte)

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” Quando finalmente encontrei-me de novo em frente de dom Juan, a primeira coisa que notei foi que ele não era parecido com o que eu imaginei durante todo tempo em que tentei reencontrá-lo. Tinha construído uma imagem do homem que conhecera na estação rodoviária, imagem que se aperfeiçoava todos os dias ao pretensamente recordar de mais detalhes. Na minha mente, ele era um velho ainda forte e ágil, entretanto quase delicado. O homem diante de mim era musculoso e decidido. Movia-se com agilidade,mas não com rapidez. Seus passos eram firmes e ao mesmo tempo leves. Irradiava vitalidade e propósito. A lembrança que compunha não estava, de modo algum, em concordância com a realidade. Achava que ele tinha cabelo curto e branco, e uma tez bastante morena. O cabelo era mais comprido e nem tão branco como eu havia imaginado. A tez tampouco era tão escura. Podia ter jurado que suas feições eram como as de um pássaro, por causa de sua idade. Mas não era assim. Tinha o rosto cheio, quase redondo. Olhando de relance, a característica mais notável do homem que me olhava eram os seus olhos escuros, que reluziam com um brilho peculiar, dançante.

Uma coisa que me havia passado despercebido completamente, na minha primeira avaliação dele, era que toda sua aparência era a de um atleta. Tinha ombros largos, estômago reto; parecia estar firmemente plantado no chão. Não havia debilidade em seus joelhos, nem tremor nos seus braços e mãos. Eu imaginava haver detectado um leve tremor em sua cabeça e seus braços, como se estivesse nervoso e instável. Imaginara-lo também com cerca de um metro e sessenta e oito de altura, oito centímetros menos do que sua altura original.

(….)

– Sou Juan Matus – disse, se sentando em outra caixa de carga, a menos de um metro á minha frente. – Esse é meu nome e eu o pronuncio porque com ele estou fazendo um ponte para você cruzar e chegar aonde estou.

Continuou me olhando um instante antes de voltar a falar.

– Sou um feiticeiro – prosseguiu ele – Pertenço a uma linhagem de feiticeiros que existe há vinte e sete gerações. Sou o nagual de minha geração.

Explicou-me que o líder de um grupo de feiticeiros como ele chama-se ´nagual´, e que este é um termo genérico que se aplica a um feiticeiro de cada geração que possui uma configuração energética específica que o diferencia dos demais. Não em termos de superioridade ou inferioridade, ou nada do gênero, mas em termos da capacidade de ser responsável.

– Só um nagual – disse ele – tem a capacidade energética de ser responsável pelo destino de seus companheiros. Cada um de seus companheiros sabe isso e aceita. O nagual pode ser um homem ou uma mulher No tempo dos feiticeiros que foram os fundadores de minha linhagem, as mulheres eram, em geral, as naguais. Seu pragmatismo natural, produto de sua feminilidade, conduziu a minha linhagem para poços de praticabilidades de onde quase não puderam sair. Então os homens assumiram a direção e conduziram a minha linhagem até poços de imbecilidades dos quais só agora estamos saindo.

” Desde o tempo do nagual Lujan, que viveu há cerca de duzentos anos, há uma união conjunta de esforços, compartilhada por um homem e uma mulher. O homem nagual traz sobriedade, a mulher nagual traz inovação.”

– Se há uma mulher nagual em minha vida? – perguntou ele adivinhando minha dúvida. – Não, não há. Sou um feiticeiro solitário. Entretanto, tenho meus companheiros.

” Ser um feiticeiro não significa praticar bruxaria, ou trabalhar pra afetar pessoas, ou possuído por demônios. Ser feiticeiro significa alcançar um nível de consciência que dá acesso a forças inconcebíveis. O termo ´feitiçaria´ é inadequado para expressar o que fazemos, como também o termo ´xamanismo´. As ações dos feiticeiros existem exclusivamente no reino do abstrato, do impessoal, e não pra prestar serviços. Os feiticeiros lutam pra alcançar uma meta que nada tem a ver com as ânsias do homem comum. As aspirações dos feiticeiros são alcançar o INFINITO, e ser consciente dele portanto.”

Dom Juan continuou, dizendo que a tarefa dos feiticeiros era enfrentar o Infinito, e que submergem nele diuturnamente, tal como um pescador submerge no mar.

Este mergulho era uma tarefa tão dominante que um feiticeiro tinha de pronunciar seu nome próprio antes de submergir nele. Lembrou-me que em Nogales ele havia pronunciado o seu nome antes de qualquer interação entre nós. Afirmara, dessa maneira, sua individualidade perante o infinito.
(…)

Dom Juan explicou-me que, como o nagual de sua geração, estava procurando um indivíduo que tivesse uma configuração energética específica, adequada para assegurar a continuidade de sua linhagem. Disse que o nagual de cada geração, durante vinte e sete gerações sucessivas, havia entrado, em certo momento, na experiência mais torturante de sua vida: a busca pela sucessão.

Olhando-me diretamente nos olhos, afirmou que o que fazia os entes humanos se transformarem em seres feiticeiros era a capacidade deles em perceber a energia tal como ela flui no universo e que, quando os feiticeiros percebem um ente humano dessa maneira, Vêem um ovo luminoso. Sua opinião era que os entes humanos não só são capazes de Ver energia diretamente como ela flui no universo, mas realmente a Vêem, embora não estejam deliberadamente conscientes de vê-la. Categorizou os feiticeiros como os únicos seres humanos inteiros que são deliberadamente conscientes de que estão Vendo energia diretamente.

Em seguida dom Juan definiu ´consciência´ como energia, e ´energia´ como sendo fluxo constante, vibração luminosa que nunca está imóvel e localizada, movimentando-se por si mesma. Ele declarou que quando se Vê um ser humano, é percebido como um aglomerado de campos energéticos unidos pela força mais misteriosa do universo: uma força vibratória aglutinante e unificadora que mantém os campos energéticos juntos em uma mesma unidade coesa. Explicou ademais que o nagual era um feiticeiro específico em cada geração, a quem os demais feiticeiros podiam ver, não como uma única bola luminosa, mas como um conjunto de duas esferas de luminosidade comprimidas e fundidas, uma sobre a outra.

– Essa característica de um ser duplo – continuou ele – permite ao nagual levar a cabo manobras que são bastante difíceis para um feiticeiro comum. Por exemplo, um nagual é conhecedor da força que mantém a nós mesmos como uma unidade coesa. O nagual pode fixar sua atenção total, por uma fração de segundo, sobre essa força e paralisar a outra pessoa. Eu o fiz com você na estação rodoviária de Nogales, porque queria deter seu bombardeio de eu, eu, eu,eu,eu, eu, eu… Queria que você me encontrasse e parasse com as sua bobagens. Desse modo um nagual mesmo tendo sua própria singularidade, não é uma pessoa determinada, mas um vazio que não reflete o mundo, mas espelha o infinito.

Dom Juan continuou explicando que no momento que se cruza o umbral peculiar do Infinito, seja deliberadamente ou, como no meu caso, involuntariamente, tudo o que passa daí por diante já não está no domínio exclusivo da própria pessoa, mas entra no reino do Infinito.

– Quando no conhecemos no Arizona, nós dois cruzamos um umbral peculiar – continuou ele – E esse umbral não foi decidido nem por você nem por mim, mas pelo próprio Infinito. O Infinito é tudo o que nos rodeia. – disse isso fazendo um gesto amplo com os braços. – Os feiticeiros de minha linhagem o chamam Infinito, espírito, mar escuro da consciência, e dizem que é algo que existe ali fora e rege nossas vidas.

Podia sinceramente compreender tudo o que dom Juan estava dizendo, e entretanto não sabia de que diabos ele estava falando. Perguntei se cruzar o umbral havia sido um acontecimento acidental, resultado de circunstâncias imprevisíveis, regidas pela sorte. Ele, no entanto, respondeu que os seus passos e os meus foram guiados pelo Infinito, e que circunstâncias que pareciam ser regidas por acaso, na essência, foram guiadas pelo ´lado ativo do infinito´. Ele o chamou Intento.

– O que nos reuniu, a você e a mim – seguiu ele – foi o Intento do Infinito. É impossível determinar o que é Intento do Infinito, entretanto está ali, tão palpável quanto eu e você. Os feiticeiros dizem que é um tremor no ar. A vantagem dos feiticeiros é saber que o tremor-no-ar existe e aquiescer a esta força sem mais delongas. Para os feiticeiros não há ponderação, espanto ou especulação. Sabem que tudo o que tem é possibilidade de unir-se com o Intento do Infinito, e eles fazem exatamente isso.

(…) Nada poderia ser mais verdade do que isso com referência a dom Juan Matus. Seu vazio refletia o Infinito. Não havia agitação de sua parte, ou asserções sobre o eu. Não havia sequer uma migalha de necessidades de ressentimentos ou remorsos. Dom Juan era uma mistura extraordinária de seus dois benfeitores naguais; por um lado extremamente quieto e introspectivo; por outro, extremamente aberto e divertido. O seu vazio era o vazio do guerreiro-viajante, experiente o ponto de não considerar nada como certo. Um guerreiro-viajante que não subestima ou supervaloriza nada. Um lutador sereno, disciplinado, cuja elegância é tão extrema que ninguém, não importa o quanto se esforce para ver, jamais encontrará a costura onde toda essa complexidade está reunida.”

(O Lado Ativo do Infinito, Carlos Castañeda, introdução de Vicente Medrano (Dinarte))

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