Tem havido uma série de perguntas feitas por diferentes pessoas sobre os mesmos tópicos. Esta preocupação deveria ser classificada, em termos gerais, como “o que acontecerá comigo?”. Pessoas têm me perguntado sobre isso pessoalmente, por escrito, ou tenho ouvido a mesma preocupação por meio de terceiros. A seguinte questão foi perguntada neste tom:
“Entendo que você está tentando reunir uma massa de pessoas, já que seu plano de feitiçaria original falhou. Estou fisgado pelo que você fez. Qual seu plano em relação a mim?”
Esta é uma pergunta que deveria ser destinada a um guru, um instrutor espiritual. Não me vejo como guru nem como instrutor espiritual, mas como alguém que está tentando atribuir um significado ao trabalho dado por Dom Juan. Ele estava se referindo ao meu papel em relação aos demais discípulos, meu grupo, quando ele disse: “Tudo o que você pode aspirar é ser um conselheiro. Você deve mostrar um erro se você vê-lo; você deve aconselhar sobre o caminho adequado para se fazer algo, porque você estará observando tudo a partir do ponto privilegiado do silêncio total. Os feiticeiros chamam isso de ‘a visão da ponte‘. Os feiticeiros veem a água — a vida — como ela flui sob a ponte. Seus olhos estão, por assim dizer, direto ao ponto onde a água escorre por debaixo da ponte. Eles não podem ver adiante. Eles não podem olhar para trás. Eles podem ver apenas o agora.”
Eu realizei o esforço derradeiro e continuarei a fazê-lo para cumprir este papel. Quando uma pessoa está interessada e diz “estou fisgada”, não ouso acreditar que a pessoa está fisgada em mim. Todos nós aprendemos e praticamos a ter uma ligação especial com o professor. Isso está enraizado, sem dúvida, por sermos pessoalmente ligados à nossa mãe ou pai, ou ambos, ou qualquer outra pessoa que desempenha este papel na família ou em nosso círculo de amizades.
Se eu desse em meus livros a impressão de que Dom Juan estava pessoalmente ligado a mim, seria fruto de minha própria má interpretação inconsciente. Ele trabalhou incessantemente, desde o momento em que o encontrei, para exterminar este impulso em mim. Ele chamou isso de carência e explicou que ela é desenvolvida e apoiada pela ordem social, e que a carência é a mais obscena maneira de criar e alimentar uma mentalidade de escravo. Ele disse que se eu acreditasse que estava “fisgado”, não estava fisgado a ele pessoalmente, porém à ideia de liberdade, uma ideia pela qual os feiticeiros passaram formulando por gerações.
Com relação ao fracasso do plano original, tudo que posso dizer é que realmente afirmei que a linhagem de Dom Juan termina comigo junto aos outros três discípulos dele, mas isso não é uma indicação de fracasso de qualquer plano. É simplesmente uma situação que os feiticeiros explicam ao dizer: “É uma condição natural como qualquer outra chegar a um fim.”
O fato de eu ter dito que gostaria de atingir tantas pessoas quanto possível e criar uma massa de consenso é uma consequência de perceber que estamos no fim da mais interessante linha de pensamentos e ações. Nós realmente sentimos que somos recipientes indignos de uma tarefa gigante; a tarefa de explicar que o mundo dos feiticeiros não é uma ilusão, nem um pensamento desejável.
Outra questão:
“Você teve um professor. Como eu posso avançar sem um? Estou preocupado porque não tenho um Dom Juan.”
A preocupação é uma maneira genuína de interação em nosso círculo social, nós nos preocupamos com tudo. A “preocupação” é uma categoria sintática, tal como dizer “eu não entendo”. Preocupar-se não significa estar preocupado com algo; é simplesmente uma maneira de sublinhar um tópico que possui importância para nós. Dizer que você se preocupa porque não existe um Dom Juan disponível já constitui uma possível declaração de derrota. É como se essa afirmação abrisse uma saída que permanece pronta para uso a qualquer momento.
Dom Juan mesmo me falou que todas as forças envidadas em me guiar foram um procedimento necessário estabelecido pela tradição dos feiticeiros. Ele teve que me preparar para dar continuidade à sua linhagem. Ao longo de todo ano, tem havido um número de pessoas que viajam para o México procurando por Dom Juan. Eles pegam a narração em meus livros como uma descrição de uma possibilidade aberta. Esta é, novamente, minha culpa. Não foi porque eu não fui cuidadoso, mas antes, porque eu tive que me abster de fazer alegações bombásticas de que eu não era de modo algum especial.
Dom Juan estava interessado em perpetuar sua linhagem, não em ensinar seu conhecimento. Já toquei nesta questão, mas é importante que eu enfatize repetidamente: Dom Juan não foi propriamente um professor. Ele foi um feiticeiro transmitindo seu conhecimento a seus discípulos, exclusivamente para a continuidade de sua linhagem.
Haja vista que sua linhagem chegou a um desfecho comigo e seus outros três discípulos, ele mesmo propôs que eu escrevesse sobre este conhecimento. E precisamente devido a sua linhagem ter chegado ao fim, que seus discípulos abriram a porta fechada do mundo dos feiticeiros e estão agora trabalhando para explicar o que é a feitiçaria, tal como os feiticeiros fazem.
Os feiticeiros dizem que o único guia ou professor possível que temos é o espírito, significando o abstrato, a força impessoal que existe no universo, consciente de si mesma. Talvez, poderia ser chamado por outro nome, tal como consciência, cognição, força de vida. Os feiticeiros acreditam que ela permeia todo o universo, pode guiá-los, e tudo que precisam para alcançar esta força é o silêncio interior; assim, eles alegam que nossa ligação é exclusiva com esta força, e não com uma pessoa.
Outra questão feita com bastante frequência é:
“Como você nunca falou sobre Tensegridade em seus livros e por que você está falando sobre isso agora?”
Nunca falei sobre Tensegridade antes porque Tensegridade é a versão dos movimentos dos passes mágicos criada pelos discípulos de Dom Juan, que foram desenvolvidos pelos xamãs que viveram no México em tempos antigos, precursores da linhagem de Dom Juan. Tensegridade é baseada naqueles passes mágicos e parte de um acordo realizado pelos quatro discípulos de Dom Juan Matus para congregar as quatro linhas diferentes de movimento ensinados para cada um deles individualmente, encaixando-se em suas respectivas configurações físicas e mentais.
Seguindo o pedido de Dom Juan, me abstive por todos esses anos de mencionar os passes mágicos. As formas altamente secretas por meio das quais os passes mágicos foram ensinados a mim implicaram num acordo de minha parte para cercá-los com o mesmo sigilo. O mais próximo que já cheguei de mencionar os passes mágicos foi quando escrevi sobre a forma que Dom Juan “estralava suas juntas”. Era um jeito engraçado que ele sugeriu para eu me referir aos passes mágicos que ele praticava incessantemente como “a maneira pela qual ele estalava suas juntas”. Toda vez que ele executava um desses passos, suas juntas faziam um som de estalo. Ele usou isso para atrair meu interesse e ocultar o verdadeiro significado do que ele estava fazendo.
Quando ele me tornou consciente dos passes mágicos ao me explicar o que eles realmente eram, eu já tinha tentado compulsivamente replicar o som que suas articulações faziam. Ao suscitar minha competitividade, ele “me fisgou”, por assim dizer, para aprender uma série de movimentos. Eu nunca atingi aquele som das juntas, o que era um bem disfarçado, porque os músculos e tendões do braço e das costas nunca deveriam ser pressionados até aquele ponto. Dom Juan nasceu com uma facilidade de estalar as juntas de seus braços e costas, tal como algumas pessoas têm a facilidade de estralar seus dedos.
Quando Dom Juan e os demais feiticeiros do seu grupo me ensinaram formalmente os passes mágicos, discutindo suas configurações e efeitos, fizeram em conformidade com procedimentos estritos; procedimentos que demandaram a maior concentração e estavam assentados em total sigilo e comportamentos ritualísticos. A parte ritualística desses ensinamentos era rapidamente deixada de lado por Dom Juan, mas a parte secreta era feita com mais ênfase ainda.
Como afirmado anteriormente, Tensegridade é a fusão de quatro linhas de passes mágicos que tiveram que ser transformados daqueles movimentos altamente especializados, que se encaixavam especificamente no indivíduo, em um formato genérico que se encaixaria em todo mundo. A razão pela qual a Tensegridade, a versão moderna dos antigos passes mágicos, está sendo ensinada agora é porque os quatro discípulos de Dom Juan concordaram que, desde que seu papel não está mais orientado na perpetuação da linhagem dos feiticeiros de Dom Juan, eles tinham que aliviar seu fardo, e se livrar do segredo sobre algo que tem sido de incomensurável valor para eles e seu bem-estar.
(Carlos Castaneda, Diário de Hermenêutica Aplicada)