“- (…) Os feiticeiros dizem que estamos dentro de uma bolha. É uma
bolha em que somos colocados no momento de nosso nascimento. A princípio a bolha está aberta, mas depois começa a fechar-se, até nos ter trancafiado dentro dela. Essa bolha é a nossa percepção. Vivemos dentro dessa bolha toda a nossa vida. E o que presenciamos em suas paredes redondas é o nosso próprio reflexo. — Ele baixou a cabeça e olhou para mim de esguelha. Deu uma risada. — Você está bobeando. Está na hora de você argumentar.

Eu ri. Por algum motivo, as advertências dele sobre a explicação dos
feiticeiros mais a compreensão da extensão assombrosa da consciência dele me estavam finalmente afetando.

— Que argumento deveria eu apresentar? — perguntei.

— Se o que presenciamos nas paredes é o nosso próprio reflexo, então o
que está sendo refletido deve ser o real — disse ele, sorrindo.

— Um bom argumento — concordei, brincando. Minha razão
acompanhava facilmente esse argumento.

— O que está refletido é nossa visão de mundo – disse ele. – Essa visão é uma primeira descrição, que nos é dada desde o momento de nosso nascimento até que toda a nossa atenção é apanhada por ela e a descrição se torna uma visão. O trabalho do mestre é reorganizar essa visão, preparar o ser luminoso para o tempo em que o benfeitor abrir a bolha do lado de fora.

Ele fez outra pausa calculada e teceu outro comentário sobre minha
falta de atenção, julgada pela minha incapacidade de fazer um comentário ou pergunta adequada.

— Qual devia ter sido minha pergunta? — indaguei.

— Por que a bolha devia ter sido aberta? — respondeu ele. Ele riu alto e
me deu um tapinha nas costas, quando eu disse que “essa é uma boa pergunta”.

— Claro!— exclamou ele, — Tem de ser uma boa pergunta para você, é
uma das suas. A bolha abre-se a fim de permitir ao ser luminoso uma visão de sua totalidade. Naturalmente isso de chamar a coisa de uma bolha é apenas uma maneira de dizer, mas nesse caso é uma maneira precisa. A delicada manobra de conduzir um ser luminoso para a totalidade de seu ser exige que o mestre trabalhe de dentro da bolha e o benfeitor de fora. O mestre reorganiza a visão do mundo. Chamei a essa visão a ilha do tonal. Já disse que tudo o que somos se encontra naquela ilha. A explicação dos feiticeiros diz que a ilha do tonal é feita por nossa percepção, que foi treinada para focalizar-se em certos elementos; cada um desses elementos e todos juntos constituem nossa visão de mundo. O trabalho do mestre, no que se refere à percepção do aprendiz, consiste em reorganizar todos os elementos da ilha em uma metade da bolha. A essa altura você já deve ter compreendido que limpar e reorganizar a ilha do tonal significa reagrupar todos os seus elementos do lado da razão. Meu trabalho tem sido desorganizar sua visão comum, não destruí-la, mas obrigá-la a passar para o lado da razão. Você fez isso melhor do que qualquer pessoa que eu conheça.

Ele desenhou um círculo imaginário na pedra e dividiu-o em dois, num diâmetro vertical. Disse que a arte de um mestre era obrigar o discípulo a agrupar sua visão do mundo na metade direita da bolha.

– Por que a metade direita? – perguntei.

– É esse o lado do tonal. O mestre sempre se dirige para esse lado, e, apresentando ao aprendiz de um lado o caminho do guerreiro, obriga-o à seriedade e a ser razoável, à força de caráter e de corpo; e apresentando-lhe de outro lado situações inimagináveis mas reais, com as quais o aprendiz não pode lidar, obriga-o a compreender que sua razão, embora seja uma coisa maravilhosa, só pode abranger uma área pequena. Uma vez que o guerreiro enfrenta sua incapacidade de raciocinar tudo, ele se dará ao trabalho de fortalecer e defender sua razão vencida, e para isso convocará tudo o que possui em torno dela. O mestre consegue isso martelando-o impiedosamente, até que sua visão do mundo seja a metade da bolha. A outra metade, a que foi limpa, pode então ser reinvindicada por algo que os feiticeiros chama de vontade. Podemos explicar isso melhor dizendo que o trabalho do mestre é limpar uma metade da bolha e reorganizar tudo na outra metade. O trabalho do bem-feitor será então abrir a bolha do lado limpo. Uma vez rompido o selo, o guerreiro nunca será mais o mesmo. Ele tem então o comando de sua totalidade. A metade direita da bolha é o centro final da razão, o tonal. A outra metade é o centro final da vontade, o nagual. É esta a ordem que deve prevalecer; qualquer outra disposição é tola e mesquinha, pois contraria nossa natureza; rouba-nos nossa herança mágica e nos reduz a zero.”

(Porta para o Infinito, Carlos Castañeda)

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