O mensageiro me disse que o hotel tinha restaurante e, quando desci para comer, vi que havia mesinhas na calçada. Era uma arrumação bonita, numa esquina, debaixo de uma arcada baixa de tijolos, em linhas modernas.

Estava fresco lá fora e havia mesas vazias, e no entanto preferi ficar dentro do hotel, onde estava mais abafado. Tinha reparado, ao chegar, que havia um grupo de engraxates sentados no meio-fio diante do restaurante e estava certo de que me perseguiriam se fosse sentar-me numa mesinha lá fora.

De onde eu estava sentado, via o grupo de garotos pela vidraça. Dois rapazes sentaram-se a uma das mesas e os garotos os rodearam, pedindo para engraxar os sapatos deles. Os rapazes recusaram e fiquei abismado ao ver que os garotos não insistiram, voltando a sentar no meio-fio. Depois de certo tempo, três homens de terno levantaram-se e os garotos correram para a mesa deles e começaram a comer as sobras de comida; em alguns segundos, os pratos estavam raspados. O mesmo aconteceu com os restos em todas as outras mesas.

Reparei que os garotos eram bastante cuidadosos; se derramavam água, enxugavam-na com seus próprios panos de engraxar. Notei, também, como eram meticulosos em seus métodos de limpeza. Comiam até os cubinhos de gelo deixados nos copos d’água e as fatias de limão do chá, com casca e tudo. Não desperdiçavam absolutamente nada.

Durante o tempo em que fiquei no hotel, descobri que havia um acordo entre os garotos e a gerência do restaurante: era permitido aos garotos ficarem no local para ganhar algum dinheiro dos hóspedes e também comer os restos, desde que não apoquentassem ninguém nem quebrassem nada.

Havia onze deles ao todo, de cinco a doze anos de idade; mas o mais velho era mantido a distância do resto do grupo. Os outros o ignoravam propositadamente, provocando-o com uma cantilena de que já tinha pelos púbicos e que era muito velho para estar entre eles.

Depois de passar três dias vendo-os procurarem como abutres os mais parcos restos, fiquei muito desanimado, e saí daquela cidade achando que não havia esperança para aquelas crianças, cujo mundo já era moldado por sua luta quotidiana por migalhas.

— Tem pena deles? — exclamou Dom Juan, em tom de pergunta.

— Por certo — disse eu.

— Por quê?

— Porque me preocupo com o bem-estar de meus semelhantes. São crianças e o mundo deles é feio e vulgar.

— Espere! Espere! Como pode dizer que o inundo deles é feio e vulgar? — perguntou Dom Juan, fazendo pouco de minha declaração. — Você acha que sua. sorte é melhor, não é?

Respondi que sim; e ele me perguntou por quê; disse-lhe que, em comparação com o mundo daquelas crianças, o meu era infinitamente mais variado e rico de experiências e oportunidades para a satisfação pessoal e o desenvolvimento. O riso de Dom Juan era simpático e sincero. Falou que eu não estava tendo cuidado com minhas palavras, que eu não podia saber da riqueza e oportunidade do mundo daquelas crianças.

Achei que Dora Juan estava sendo teimoso. Pensei mesmo que ele estava adotando o ponto de vista oposto só para me aborrecer. Acreditava sinceramente que aquelas crianças não tinham a menor possibilidade de desenvolvimento intelectual. Discuti meu ponto de vista mais um pouco e então Dom Juan me perguntou, abruptamente;

— Você uma vez não me disse que, em sua opinião, a maior realização da pessoa era tornar-se um homem de conhecimento?

Eu tinha dito aquilo, e repeti que, em minha opinião, ser um homem de conhecimento era uma das maiores realizações intelectuais.

— Acha que o seu mundo muito rico algum dia o ajudaria a tornar-se um homem de conhecimento? — perguntou Dom Juan, com um ligeiro sarcasmo.

Não respondi, e ele tornou a fazer a pergunta, de maneira diferente, coisa que sempre faço com ele quando acho que não está entendendo.

— Em outras palavras — disse ele, sorrindo abertamente, sabendo certamente que eu estava vendo seu artifício — a sua liberdade e oportunidades o ajudam a tomar-se um homem de conhecimento?

— Não! — respondi, enfaticamente.

— Então, como é que pôde ter pena daquelas crianças? — continuou ele, muito sério. — Qualquer delas pode tornar-se um homem de conhecimento. Todos os homens de conhecimento que conheço foram garotos como os que você viu comendo sobras e lambendo as mesas.

O argumento de Dom Juan deixou-me com uma sensação incômoda. Eu não tinha sentido pena daquelas crianças desprivilegiadas por não terem o que comer, mas sim porque, a meu ver, o mundo delas já as condenara a serem intelectualmente inadequadas. E no entanto, para Dom Juan qualquer delas poderia conseguir o que eu acreditava ser a epítome da realização intelectual do homem, o objetivo de ser um homem de conhecimento. Meu motivo de compaixão por elas era incongruente. Dom Juan me pilhara direitinho.

— Talvez você tenha razão — disse eu. — Mas como é que se pode evitar o desejo, o desejo sincero, de ajudar a seu semelhante?

— De que modo você acha que se pode ajudá-los?

— Aliviando a carga deles. O mínimo que se pode fazer por seu semelhante é procurar modificá-lo. Você mesmo está empenhado nisso. Não está?

— Não estou, não. Não sei o que modificar nem por que modificar nada em meus semelhantes.

— E eu, Dom Juan? Não me estava ensinando para eu poder modificar-me?

— Não. Não estou tentando modificá-lo. Pode acontecer que um dia você se torne um homem de conhecimento, não há meio de se saber isso, mas tal fato não o modificará. Um dia talvez você consiga ver os homens de outro modo e então compreenderá que não há meio de modificar nada neles.

— Qual é esse outro modo de ver, Dom Juan?

— Os homens parecem diferentes quando você vê. O fuminho o ajudará a ver os homens como fibras de luz.

— Fibras de luz?

— Sim, Fibras, como teias de aranhas brancas. Fios muito finos que circulam da cabeça ao umbigo. Assim, o homem parece um ovo de fibras circundantes. E seus braços e pernas são como espinhos luminosos, espocando em todas as direções.

— É assim que todos aparecem?

— Todos. Além disso, todos os homens estão em contato com tudo o mais, não por suas mãos, mas por meio de um punhado de fibras compridas que saem do centro de seu abdômen. Essas fibras ligam o homem a seu ambiente; mantêm seu equilíbrio; dão-lhe estabilidade. Assim, como algum dia você poderá ver, o homem é um ovo luminoso, quer ele seja mendigo ou rei, e não há jeito de modificar nada, ou melhor, o que poderia ser modificado naquele ovo luminoso? O quê?

(Uma Estranha Realidade, Carlos Castaneda.)
(Compartilhado pela página Pistas do Caminho))

Posts Relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *