“— Você se está mimando exageradamente — disse ele com secura. Pareceu absorver-se em seus pensamentos, como se estivesse procurando uma sugestão adequada para fazer.

— O problema de hoje é ver as pessoas — disse ele, por fim. — Primeiro você tem de parar seu diálogo interno; depois, tem de evocar a imagem da pessoa que você quer ver; qualquer pensamento que se tenha em mente num estado de silêncio é na verdade uma ordem, já que não há outros pensamentos para competir com ele. Hoje, a mariposa no mato deseja ajudá-lo, de modo que cantará para você. Seu canto trará os pontos dourados e aí você verá a pessoa escolhida.

Eu queria mais detalhes, mas ele fez um gesto brusco e ordenou que eu continuasse. Depois de lutar alguns momentos para parar meu diálogo interno, fiquei completamente calado. E aí evoquei propositadamente a idéia breve de um amigo meu. Fiquei de olhos fechados durante o que pensei ser um instante e aí senti que alguém me sacudia pelos ombros. Foi uma percepção lenta. Abri os olhos e vi que estava deitado sobre o lado esquerdo. Parece que eu adormecera tão profundamente que nem me lembrava de ter caído ao chão.

Dom Juan ajudou-me a sentar-me. Ele estava rindo. Imitou meus roncos e comentou que, se não o tivesse visto, não acreditaria que alguém pudesse adormecer tão depressa. Disse que era uma delícia estar por perto sempre que eu tinha de fazer alguma coisa que a minha razão não compreendesse. Ele afastou meu caderninho e disse que tínhamos de começar tudo novamente. Segui as etapas necessárias.

O ruído estranho tornou a fazer-se ouvir. Dessa vez, porém, não vinha do chaparral; parecia estar acontecendo dentro de mim, como se meus lábios, ou pernas ou braços o produzissem. O som logo me envolveu. Parecia que bolas macias estavam sendo expelidas de mim ou contra mim; era uma sensação calmante e rara de ser bombardeado por pesadas mechas de algodão. De repente, ouvi uma porta abrir-se violentamente com uma rajada de vento, e recomecei a pensar. Achei que tinha estragado mais uma oportunidade. Abri os olhos e encontrei-me em meu quarto. Os objetos sobre a escrivaninha estavam como eu os deixara. A porta estava aberta; lá fora o vento soprava com força. Tive a idéia de que devia verificar o aquecedor de água. Aí escutei um barulho nas janelas de correr que eu mesmo instalara e que não se encaixavam bem na esquadria da janela. Era um matraquear furioso, como se alguém estivesse querendo entrar. Levei um susto. Levantei da cadeira. Senti que alguém me puxava. Gritei.

Dom Juan me sacudia pelos ombros. Agitado, contei-lhe minha visão. Fora tão vivida que eu estava tremendo, Senti que acabara de estar junto à minha escrivaninha, em toda a minha forma corporal. Dom Juan sacudiu a cabeça, descrente, e disse que eu era um gênio em matéria de me iludir. Não pareceu estar impressionado com o que eu fizera, Fez pouco caso daquilo e mandou que eu recomeçasse.

Aí tornei a ouvir o ruído misterioso. Chegou-me, conforme Dom Juan sugerira, na forma de pontos dourados. Não os senti como pontos chatos ou flocos, como ele os descrevera, e sim como bolhas esféricas. Elas flutuavam para junto de mim. Uma delas estourou, abrindo-se e revelando-me uma cena, Era como se tivesse parado defronte de meus olhos e se aberto, revelando um objeto estranho. Parecia um cogumelo. Eu estava positivamente olhando para ele, c o que eu experimentava não era um sonho. O objeto parecido com cogumelo permaneceu sem modificações no meu campo de visão e depois estourou, como se a luz que o iluminava, tivesse sido desligada. Seguiu-se uma escuridão interminável Senti um tremor, um choque muito enervante e aí percebi de repente que eu estava sendo sacudido. De repente, todos os meus sentidos se aguçaram.

Dom Juan me sacudia com força, e eu estava olhando para ele. Eu devia ter aberto os olhos naquele instante. Ele borrifou água em meu rosto. O frio da água era muito agradável. Depois de um momento, ele quis saber o que acontecera. Contei todos os detalhes de minha visão.

— Mas o que foi que eu vi? — perguntei.

— Seu amigo — respondeu ele.

Eu ri e expliquei com paciência que tinha visto uma figura de cogumelo. Embora não tivesse critérios para julgar as dimensões, tinha a impressão de que devia ter uns 30 centímetros.

Dom Juan frisou que o que importava eram as impressões. Disse que minhas impressões eram a medida que avaliava o estado de ser do objeto de minha vista.

— Por suas descrições e suas impressões, tenho de concluir que o seu amigo deve ser um belo homem — disse ele.

Fiquei perplexo com suas palavras.

Ele disse que a forma de cogumelo era a forma básica dos seres humanos quando um feiticeiro os via de muito longe, mas quando o feiticeiro estava diretamente defronte da pessoa que estava vendo, a qualidade humana aparecia como um conjunto em forma de ovo de fibras luminosas.

— Você não estava diretamente defronte de seu amigo — disse ele. — Portanto, ele apareceu como um cogumelo.

— Por quer isso é assim, Dom Juan?

— Ninguém sabe. Simplesmente é assim que os homens aparecem nesse tipo específico de ver.

Ele acrescentou que todos os traços da formação semelhante ao cogumelo tinham um significado especial, mas que era impossível a um principiante interpretar com precisão tais significados. Aí tive uma recordação curiosa.

Alguns anos antes num estado de realidade não comum, provocado pela ingestão de plantas psicotrópicas, eu experimentara ou percebera, ao olhar para um riacho, que um grupo de bolhas flutuava em minha direção, envolvendo-me. As bolhas douradas que eu acabava de ver me haviam envolvido exatamente do mesmo modo. De fato, eu podia dizer que ambos os grupos tinham a mesma estrutura e o mesmo padrão.

Dom Juan escutou meus comentários sem interesse.

— Não desperdice seu poder com ninharias — disse ele. — Você está lidando com aquela imensidão ali. — Ele apontou para o chaparral com um movimento da mão, — Transformar aquela magnificência era algo razoável nada fará por você. Aqui, rodeando-nos, está a própria eternidade. Querer reduzi-la a uma tolice tratável é mesquinho e completamente desastroso.

Ele aí insistiu para eu tentar ver outra pessoa do meu círculo de relações. Acrescentou que uma vez terminada a visão, eu devia procurar abrir os olhos sozinho e voltar à plena consciência de meu ambiente imediato.

Consegui manter a visão de outra forma de cogumelo, mas, enquanto a primeira fora amarelada e pequena, a segunda era esbranquiçada, maior e tortuosa.

Quando acabamos de falar sobre as duas formas que eu vira, eu já me esquecera da “mariposa no mato”, que pouco antes fora tão impressionante, Eu disse a Dom Juan que estava abismado por ter tanta facilidade em deixar de lado uma coisa tão espantosa. Era como se eu não fosse a pessoa que eu sabia ser.

— Não sei por que você dá tanta importância a isso — disse Dom Juan. — Sempre que o diálogo pára, c mundo entra em colapso e facetas extraordinárias de nossos seres emergem, como se tivessem sido mantidas numa guarda severa por nossas palavras. Você é o que é porque se diz a si mesmo que é assim.

Depois de um breve descanso, Dom Juan insistiu para eu continuar a chamar amigos. Disse que o interessante era tentar ver o máximo de vezes possível, a fim de estabelecer uma linha mestra para o sentimento.

Chamei 32 pessoas em seguida. Depois de cada tentativa, ele pedia uma descrição cuidadosa e detalhada de tudo o que eu percebera em minha visão. Mas ele mudou de método quando me tornei mais hábil em meu desempenho — interrompia o diálogo interno dentro de segundos, já era capaz de abrir os olhos sozinho, ao fim de cada experiência, e podia retomar minhas atividades normais sem transição. Observei essa modificação quando estávamos conversando sobre a coloração das formações de cogumelos, Ele já mostrara que o que eu chamava de coloração era não uma tonalidade, e sim um brilho de várias intensidades. Eu ia descrever um brilho amarelado que eu vira, mas ele me interrompeu e descreveu com precisão o que eu tinha visto. Daquele ponto em diante, ele discutiu o conteúdo de cada visão, não como se tivesse entendido o que eu dissera, mas como se ele mesmo o tivesse visto.

Quando lhe pedi para comentar a respeito, ele se recusou terminantemente. Quando acabei de chamar as 32 pessoas, vi que tinha visto uma série de formas de cogumelos, e brilhos, c que tinha vários sentimentos para com eles, indo desde um prazer ameno a uma repugnância total.

Dom Juan explicou que os homens são cheios de configurações que poderiam ser desejos, problemas, tristezas, preocupações, e assim por diante. Assegurou que somente um feiticeiro muito poderoso poderia deslindar o significado de tais configurações, e que devia contentar-me em ver apenas a forma geral dos homens. Eu estava muito cansado, Havia algo de realmente fatigante em todas aquelas formas estranhas. Minha impressão geral era de náuseas. Não gostara delas. Elas me faziam sentir encurralado e condenado. Dom Juan mandou que eu escrevesse, para fazer passar a sensação de tristeza.

Depois de um longo intervalo de silêncio, em que não consegui escrever uma palavra, ele me pediu que chamasse gente escolhida por ele. Surgiu uma nova série de formas. Em vez de cogumelos, pareciam mais taças japonesas para saque, de boca para baixo, Algumas tinham forma de cabeça, tal como a base de taças de saque, outras, mais redondas, eram de formas atraentes e suaves. Senti que havia nelas uma sensação inerente de felicidade. Elas saltavam, em contraste com o peso agarrado ao solo demonstrado pela série anterior. De algum modo, o simples fato de elas estarem ali aliviou minha fadiga. Entre as pessoas que ele escolhera estava o seu aprendiz, Eligio.

Quando evoquei a visão de Eligio, levei um susto que abalou meu estado visionário. Eligio tinha uma forma branca e longa, que se contorcia e parecia saltar sobre mim. Dom Juan explicou que Eligio era um aprendiz muito talentoso e que, sem dúvida, percebera que alguém o estava vendo.

Outra escolha de Dom Juan foi Pablito, o aprendiz de Dom Genaro. O choque que a visão de Pablito provocou em mim ainda foi pior do que o de Eligio. Dom Juan ria tanto que as lágrimas lhe corriam pelas faces.

— Por que essa gente tem formas diferentes? — perguntei.

— Têm mais poder pessoal — respondeu ele. — Conforme pode observar, não estão presos ao solo.

— O que lhes deu essa leveza? Já nasceram assim?

— Nós todos nascemos assim leves e saltitantes, mas nos tornamos presos à terra e Fixos. Nós nos fazemos ficar assim. Portanto, talvez possamos dizer que essas pessoas têm formas diferentes porque vivem como guerreiros. Mas isso não é importante. O que tem valor é você ter chegado até aqui. Chamou 47 pessoas e resta apenas mais uma para que se completem as 48 originais.

Lembrei-me naquele momento que anos antes ele me dissera, falando sobre feitiçaria do milho e adivinhação, que o número de grãos de milho que um feiticeiro possuía era 48. Nunca explicara por quê. Tornei a perguntar: — Por que 48? — Quarenta e oito é o nosso número — disse ele, — É isso que nos toma homens. Não sei por quê. Não desperdice seu poder fazendo perguntas tolas.

Ele se levantou e esticou os braços e as pernas. Ordenou que eu fizesse o mesmo. Reparei que havia uma réstia de luz no céu para o Leste, Sentamo-nos novamente. Ele se inclinou e encostou a boca a meu ouvido.

— A última pessoa que você vai chamar é Genaro — cochichou.

Senti uma onda de curiosidade e agitação. Passei rapidamente pelos estágios necessários. O som estranho da orla do chaparral tornou-se nítido, adquirindo força nova. Eu quase o havia esquecido. As bolhas douradas me envolveram e ai numa delas vi Dom Genaro em pessoa, de pé diante de mim, com o chapéu na mão. Estava sorrindo. Abri os olhos depressa e já ia falar com Dom Juan, mas antes de poder pronunciar qualquer palavra, meu corpo enrijeceu como uma tábua; meus cabelos se arrepiaram e, por um momento prolongado, eu não sabia o que fazer ou dizer. Dom Genaro estava ali bem defronte de mim. Em pessoa!

Virei-me para Dom Juan; ele sorria. Aí ambos deram uma sonora gargalhada. Também tentei rir. Não consegui. Levantei-me. Dom Juan deu-me uma caneca de água. Bebi maquinalmente. Pensei que fosse borrifar água em meu rosto, mas ele tornou a encher a caneca. Dom Genaro coçou a cabeça e escondeu um sorriso.

— Não vai cumprimentar Genaro? — perguntou Dom Juan.

Fiz um esforço enorme para ordenar minhas idéias e impressões. Por fim, murmurei cumprimentos a Dom Genaro.

Ele fez uma reverência.

— Você me chamou, não foi? — perguntou, sorrindo.

Murmurei que estava assombrado ao vê-lo ali.

— Ele o chamou, sim — interrompeu Dom Juan.

— Pois aqui estou — disse-me Dom Genaro. — O que posso fazer por você?

Aos poucos minha mente foi-se organizando e afinal tive uma percepção repentina. Meus pensamentos tinham uma clareza cristalina e eu sabia o que realmente acontecera. Imaginei que Dom Genaro estava visitando Dom Juan, e que assim que eles ouviram meu carro se aproximando, Dom Genaro se esgueirara para o mato, ficando escondido até escurecer. Achei as provas convincentes. Dom Juan, que com certeza concebera tudo aquilo, me dava pistas de vez em quando, dirigindo assim os acontecimentos. No momento devido, Dom Genaro me fizera notar sua presença e, quando Dom Juan e eu estávamos voltando para casa, ele nos seguiu, de modo bem óbvio, para me fazer medo. Depois esperara no mato e fizera o som estranho, sempre de acordo com. sinais de Dom Juan, O sinal final para sair do mato devia ter sido dado por Dom Juan quando meus olhos estavam fechados, depois que ele me dissera para chamar Dom Genaro. Aí Dom Genaro devia ter caminhado até à ramada e esperado até eu abrir os olhos, assustando-me então mortalmente. As únicas incongruências em minhas explicações eram que eu tinha de fato visto o homem escondido no mato transformar-se num pássaro, e que eu primeiro visualizara Dom Genaro como imagem numa bolha dourada. Na minha visão, ele estava vestido exatamente como em pessoa. Como não havia um meio lógico de explicar isso, supus, como sempre fiz em circunstâncias análogas, que a tensão emocional podia ter representado um papel importante na determinação do que- eu acreditava ver. Comecei a rir involuntariamente à idéia daquele artifício absurdo.

Contei-lhes minhas deduções. Eles se riram às gargalhadas. Acredito francamente que o riso deles os denunciou.

— Estava escondido no mato, não estava? — perguntei a Dom Genaro.

Dom Juan sentou-se e segurou a cabeça com as duas mãos.

— Não, eu não estava escondido — disse Dom Genaro, com paciência.

— Estava longe daqui, e aí você chamou e vim vê-lo.

— Onde estava, Dom Genaro?

— Bem longe.

— A que distância?

Aí Dom Juan interrompeu-me e explicou que Dom Genaro tinha aparecido como um ato de deferência para comigo, e que eu não podia perguntar onde ele estava, pois ele não estava em lugar algum.

Dom Genaro veio em minha defesa e disse que eu podia perguntar-lhe o que quisesse.

— Se não estava escondido por aqui, então onde estava, Dom Genaro? — perguntei.

— Eu estava em minha casa — respondeu ele, com muita candura.

— No centro do México?

— Sim! É a única casa que possuo.

Eles se olharam e recomeçaram a rir. Eu sabia que estavam brincando comigo, mas resolvi não discutir mais o assunto. Achei que eles deviam ter um motivo para se empenharem numa coisa tão complicada.

Sentei-me. Eu me sentia realmente dividido; uma parte de mim não se mostrava nada chocada e aceitava qualquer ato de Dom Juan ou de Dom Genaro segundo as aparências. Mas havia outra parte de mim que se recusava firmemente; era o meu lado mais forte. Conforme meu julgamento consciente, eu aceitara a descrição de feiticeiro do mundo por Dom Juan somente numa base intelectual, enquanto que meu corpo, como um todo, a recusava, e dai o meu dilema. Mas, durante todos os anos de minha ligação com Dom Juan e Dom Genaro, eu experimentara fenômenos extraordinários e essas tinham sido experiências corporais, não intelectuais. Naquela noite mesmo eu executara o “passo do poder”, que, do ponto de vista do meu intelecto, era uma realização inconcebível; e, melhor que tudo, eu tivera visões incríveis, por meios unicamente de minha própria vontade.

Expliquei-lhes a natureza de minha perplexidade dolorosa e ao mesmo tempo minha boa-fé.

— Esse camarada é um gênio — disse Dom Juan a Dom Genaro, sacudindo a cabeça, incrédulo.

— Você é um gênio e tanto, Carlitos — anuiu Dom Genaro, como se estivesse transmitindo um recado.”

(Porta para o Infinito, Carlos Castañeda)

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