Depois, passou a demonstrar uma maneira especial de caminhar no escuro, uma maneira que ele chamava “o passo do poder”. Inclinou-se diante de mim e me fez passar as mãos pelas costas e joelhos dele, para ter uma ideia da posição de seu corpo. O tronco de Dom Juan estava ligeiramente inclinado para a frente, mas sua espinha permanecia reta. Os joelhos, também, postavam-se ligeiramente dobrados.
Andou devagar na minha frente, para eu poder observar que ele levantava os joelhos quase até o peito cada vez que dava um passo. E depois, ele chegou a correr e sumir de vista, retornando em seguida. Eu não podia imaginar como é que ele podia correr na escuridão total.
— O passo do poder é para correr de noite — cochichou, em meu ouvido.
Ele disse que eu o experimentasse. Falei que tinha certeza de que ia quebrar as pernas caindo numa fenda ou batendo em alguma pedra. Dom Juan, muito calmamente, disse que o “passo do poder” era inteiramente seguro.
Repliquei que o único meio de eu compreender seus atos era supor que ele conhecesse aqueles morros à perfeição, “evitando”, assim, os obstáculos. Dom Juan pegou minha cabeça em suas mãos e cochichou com veemência:
— É noite! E ela é poder!
Largou minha cabeça e depois disse, baixinho, que, de noite, o mundo era diferente, e que sua capacidade de correr no escuro nada tinha a ver com seu conhecimento daqueles morros. Falou que a chave para aquilo era deixar o poder pessoal correr livremente, para poder fundir-se com o poder da noite, e que uma vez que o poder tomasse conta, não haveria hipótese de um deslize. Acrescentou, num tom muito sério, que, se eu duvidasse, que pensasse um momento no que estava acontecendo. Para um homem da idade dele correr por aqueles morros àquela hora seria suicídio, se o poder da noite não o estivesse guiando.
— Olhe! — disse ele; e correu rapidamente para dentro da escuridão, retornando em seguida.
A maneira de ele mover o corpo era tão extraordinária que eu não podia acreditar no que via. Ele parecia trotar no mesmo lugar por um momento. Seu modo de levantar as pernas me lembrava um corredor fazendo seus exercícios preliminares para aquecer-se.
Então, ele me disse que o seguisse. Eu o fiz com o maior constrangimento e inquietação. Com um cuidado enorme, tentava olhar onde pisava, mas era impossível calcular a distância. Dom Juan voltou e trotou a meu lado. Cochichou que eu tinha de me entregar ao poder da noite e confiar no pouco poder pessoal que eu tinha, senão eu nunca conseguiria mover-me com liberdade e que a escuridão só me atrapalhava porque eu confiava na minha visão para tudo o que fazia, sem saber que outra maneira de me mover era deixar que o poder fosse o guia.
Experimentei várias vezes, sem sucesso. Eu simplesmente não conseguia me largar. O medo de machucar minhas pernas era imenso. Dom Juan mandou que eu continuasse a me mover no mesmo lugar e tentar sentir como se estivesse realmente usando o “passo do poder”.
Depois, ele disse que ia correr na minha frente e que eu devia esperar seu pio de coruja. Desapareceu na escuridão antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. Fechei os olhos e trotei no mesmo lugar, com os joelhos e o tronco dobrados, talvez por uma hora. Pouco a pouco, minha tensão começou a diminuir, até eu ficar razoavelmente à vontade. Então, ouvi o pio de Dom Juan.
Corri uns cinco ou seis metros na direção de onde vinha o grito, procurando “entregar-me”, conforme sugerira Dom Juan. Mas quando tropecei num arbusto, minha sensação de insegurança logo voltou.
Dom Juan estava me esperando e corrigiu minha postura. Insistiu em que eu devia primeiro enroscar os dedos contra as palmas das mãos, esticando o polegar e o indicador de cada mão. Depois, disse que, em sua opinião, eu só estava cedendo a meus sentimentos de inaptidão, pois eu sabia muito bem que podia sempre ver razoavelmente, por mais escura que fosse a noite, se eu não focalizasse os olhos em nada e ficasse examinando o chão bem defronte de mim. O “passo do poder” era semelhante a procurar um lugar para descansar. Ambos exigiam um sentido de abandono e de confiança. O “passo do poder” exigia que a pessoa ficasse com os olhos grudados no chão, diretamente em frente, pois o menor olhar para o lado acarretaria uma alteração no fluxo do movimento. Explicou que inclinar o tronco para a frente era necessário a fim de baixar a vista e o motivo para levantar os joelhos até o peito era que os passos tinham de ser muito curtos e seguros. Avisou-me de que eu ia tropeçar muito a princípio, porém explicou que, com a prática, eu poderia correr tão depressa e em segurança quanto de dia.
Durante horas procurei imitar seus movimentos e ficar no estado de espírito recomendado por ele. Com muita paciência, ele trotava no mesmo lugar na minha frente, ou então partia numa corrida curta e voltava para onde eu estava, para eu observar como ele se movimentava. Chegava a me empurrar para me fazer correr alguns metros.
Depois, ele sumiu e me chamou com uma série de pios de coruja. Inexplicavelmente, movimentei-me com uma confiança inesperada. Ao que eu soubesse, eu não tinha feito nada que justificasse essa sensação, mas meu corpo parecia ter ciência das coisas sem pensar nelas. Por exemplo, eu não via propriamente as pedras afiadas em minha frente, mas meu corpo sempre conseguia pisar nas beiradas e nunca nas feridas, a não ser acidentalmente, quando eu me desequilibrei por me haver distraído. O grau de concentração necessário para ficar examinando a área bem defronte tinha de ser total. Conforme Dom Juan me avisara, qualquer olhar para o lado ou muito para a frente alterava o fluxo.
Depois de uma longa busca, localizei Dom Juan. Ele estava sentado junto de umas formas escuras que se assemelhavam a árvores. Veio em minha direção e disse que eu estava indo muito bem, mas que estava na hora de parar porque ele já estava usando o assobio dele havia muito tempo e estava certo de que, àquela altura, já podia ser imitado por outros.
Concordei que estava na hora de parar. Eu estava quase exausto com meus esforços. Senti um alívio e perguntei-lhe quem iria imitar o grito dele.
— Poderes, aliados, espíritos, quem sabe? — disse ele, num sussurro.
Explicou que aqueles “entes da noite” geralmente faziam sons muito melodiosos, mas levavam desvantagem para reproduzir a dissonância dos gritos ou assobios humanos. Advertiu-me de que sempre parasse de me mover quando ouvisse um som desses e que, habitualmente, conservasse em mente tudo o que ele dissera, pois, em alguma outra ocasião, eu poderia ter de fazer a devida identificação. Num tom tranquilizador, falou que eu já tinha uma boa ideia do que fosse o “passo do poder” e que, para dominá-lo, eu só precisava de mais um empurrãozinho, que eu poderia levar em outra ocasião em que nos aventurássemos novamente dentro da noite. Deu-me um tapinha no ombro e declarou que estava pronto para partir.
— Vamos sair daqui — disse ele; e começou a correr.
— Espere! Espere! — gritei, freneticamente. — Vamos caminhar.
Dom Juan parou e tirou o chapéu.
— Puxa! — disse ele, num tom de perplexidade. — Estamos numa sinuca. Você sabe que não sei andar no escuro. Só sei correr. Se eu andar, vou quebrar as pernas.
Eu tinha a impressão de que ele estava sorrindo quando disse aquilo, apesar de não poder ver o rosto dele.
Acrescentou, num tom confidencial, que estava velho demais para andar e que o pouquinho do “passo do poder” que eu aprendera naquela noite tinha de servir para a eventualidade.
— Se não usarmos o “passo do poder”, seremos ceifados como grama — cochichou ele em meu ouvido.
— Por quem?
— Há coisas na noite que agem sobre as pessoas — murmurou, num tom que me deu calafrios.
Disse que não era importante eu ficar junto dele, porque ia dar sinais repetidos de quatro pios de coruja de cada vez, para eu poder acompanhá-lo.
Sugeri que ficássemos naqueles morros até o amanhecer e então partíssemos. Ele retrucou, num tom muito dramático, que ficar ali seria suicídio; e mesmo que saíssemos com vida, a noite teria esgotado nosso poder pessoal a ponto de não podermos evitar sermos vítimas do primeiro risco do dia.
— Não vamos mais perder tempo — disse ele, com uma nota de urgência na voz. — Vamos sair daqui.
Garantiu-me de que tentaria ir o mais devagar possível. Suas instruções finais foram para eu não dar um pio, acontecesse o que acontecesse. Deu-me a direção geral aonde íamos e começou a se movimentar bem mais devagar. Eu o segui, mas, por mais devagar que ele se movesse, não conseguia acompanhá-lo, e ele desapareceu nas trevas.
Após ficar sozinho, verifiquei que estava andando bem rapidamente, sem o perceber. E isso foi um choque para mim. Tentei conservar aquele ritmo por muito tempo e, depois, ouvi o pio de Dom Juan, um pouco à minha direita. Ele assobiou quatro vezes seguidas.
Depois de muito pouco tempo, ouvi de novo seu pio de coruja, dessa vez à minha extrema direita. Para poder segui-lo tive de dar uma volta de 45 graus. Comecei a mover-me nessa nova direção, esperando que os três outros pios da série me dessem uma orientação melhor.
Ouvi um novo assobio, que colocava Dom Juan quase na direção de onde vínhamos. Parei e escutei. Ouvi um ruído muito forte a certa distância. Alguma coisa como duas pedras batendo uma na outra. Esforcei-me para ouvir e percebi uma série de barulhinhos, como se duas pedras estivessem sendo batidas de leve. Ouvi outro pio de coruja e então notei o que Dom Juan queria dizer. Havia alguma coisa realmente melodiosa nele. Era positivamente mais prolongado e ainda mais musical do que o de uma coruja de verdade.
Tive uma estranha sensação de medo. Meu estômago contraiu-se como se alguma coisa me estivesse puxando do meio do meu corpo. Virei-me e comecei a semitrotar na direção oposta.
Ouvi um vago pio de coruja à distância. Houve uma sucessão rápida de mais três pios. Eram de Dom Juan. Corri naquela direção. Senti que ele devia estar a uns 500 metros e, se ele mantivesse aquela velocidade, em breve eu estaria inexplicavelmente só naqueles morros. Não podia compreender por que Dom Juan queria correr na frente, quando podia correr em volta de mim, se precisava manter aquele ritmo.
Então, reparei que parecia haver alguma coisa se movendo comigo à minha esquerda. Eu quase podia vê-la, na periferia extrema de meu campo visual. Já ia entrando em pânico, mas uma ideia calmante me passou pela cabeça. Eu não podia ver nada no escuro. Queria olhar naquela direção, mas tive medo de perder o impulso.
Outro pio de coruja me sacudiu de minhas meditações. Vinha da minha esquerda. Não o acompanhei porque era, sem dúvida, o canto mais doce e melodioso que eu já ouvira na vida. Mas não me assustou. Havia algo de muito atraente, ou provocante, ou mesmo triste nele.
Neste momento, uma massa escura muito veloz atravessou em minha frente, da esquerda para a direita. Seus movimentos repentinos me fizeram olhar para a frente, perdi o equilíbrio e bati ruidosamente de encontro a uma moita. Caí de lado e então ouvi o pio melodioso a alguns passos à minha esquerda. Levantei-me, mas antes de poder avançar de novo ouvi outro grito, mais possante do que o primeiro. Era como se alguma coisa ali quisesse que eu parasse para escutar. O som do pio da coruja era tão prolongado e suave que dissipou meus temores. Eu teria chegado a parar se, naquele preciso momento, não tivesse ouvido os quatro pios ásperos de Dom Juan. Pareciam estar mais próximos. Dei um salto e parti naquela direção.
Depois de um momento, tornei a notar um certo clarão ou onda na escuridão à minha esquerda. Não era propriamente uma coisa vista, mas antes uma sensação, e no entanto eu estava quase seguro de o estar percebendo com os olhos. Movia-se mais depressa do que eu e tornou a atravessar da esquerda para a direita, fazendo-me perder o equilíbrio. Dessa vez não caí e, estranhamente, fiquei aborrecido por isso. De repente, fiquei zangado, e a incongruência de meus sentimentos me lançou num verdadeiro pânico. Tentei acelerar minha marcha. Queria dar um pio de coruja, eu também, para fazer Dom Juan saber onde eu estava, mas não ousava desobedecer às instruções dele.
Naquele momento, uma coisa horrível me chamou a atenção. Havia realmente alguma coisa como um animal à minha esquerda, quase me tocando. Involuntariamente, dei um salto e virei para a direita. O susto quase me sufocou. Eu estava tão intensamente aguilhoado pelo medo que não tinha nenhum pensamento na cabeça, ao me mover no escuro o mais depressa que podia. Meu medo parecia ser uma sensação orgânica, que não tinha nada a ver com meus pensamentos. Achei aquilo muito fora do comum. Em toda minha vida, meus temores sempre tinham uma base numa matriz intelectual e tinham sido provocados por situações sociais ameaçadoras, ou por pessoas procedendo para comigo de maneira perigosa. Dessa vez, porém, meu medo foi uma verdadeira novidade. Vinha de uma parte desconhecida do mundo e me atingiu numa parte desconhecida de mim mesmo.
Ouvi um pio de coruja muito perto e um pouco à minha esquerda. Não peguei os detalhes do som, porém parecia ser de Dom Juan. Não era melodioso. Diminuí a marcha. Seguiu-se outro pio. Ouvi a aspereza dos assobios de Dom Juan, de modo que acelerei. Um terceiro assobio veio de perto. Eu distinguia uma massa de rochas, ou talvez árvores. Ouvi outro pio de coruja e pensei que Dom Juan me estivesse esperando porque estávamos fora da zona de perigo. Eu estava quase na borda da área mais escura, quando um quinto pio me fez gelar onde estava. Esforcei-me para ver adiante na área escura, mas um súbito farfalhar à minha esquerda me fez virar a tempo de ver um objeto preto, mais preto que o resto, rodando ou deslizando a meu lado. Soltei uma exclamação e saltei para longe. Ouvi um som característico, como se alguém estivesse estalando os lábios, e depois uma massa escura muito grande saiu da área escura. Era quadrada, como uma porta, e tinha talvez uns dois metros e meio ou três metros.
Sua aparição tão repentina me fez gritar. Por um momento, meu susto não teve tamanho, mas um segundo depois eu estava assombrosamente calmo, olhando para a forma escura.
Minhas reações, no que me dizia respeito, foram outra novidade total. Uma parte de mim mesmo parecia impelir-me para a área escura com uma insistência misteriosa, enquanto que outra parte de mim resistia. Era como se eu quisesse descobrir com certeza, por um lado, e por outro eu quisesse correr dali histericamente.
Eu mal ouvi os pios de coruja de Dom Juan. Pareciam estar muito próximos e frenéticos; eram mais longos e ásperos, como se ele estivesse assobiando enquanto corria em minha direção.
De repente, parece que consegui controlar-me e virar; e, por um momento, corri, justamente como Dom Juan queria que eu fizesse.
— Dom Juan! — gritei, quando o encontrei.
Ele tapou minha boca com a mão e me fez sinal para acompanhá-lo e nós dois trotamos num ritmo cômodo até chegarmos à saliência de pedra onde tínhamos estado antes.
Ficamos sentados na pedra num silêncio absoluto por mais ou menos uma hora, até o amanhecer. Então, comemos a comida das cabaças. Dom Juan disse que tínhamos de ficar na saliência até o meio-dia, e que não íamos dormir, e sim conversar como se não houvesse nada de anormal.
Pediu-me para contar com detalhes tudo o que me acontecera desde o momento em que me deixou. Quando terminei a narração, ele ficou calado por muito tempo. Parecia estar afundado em seus pensamentos.
— Não parece que as coisas estejam muito bem — disse ele, por fim. — O que lhe aconteceu ontem à noite foi grave, tão grave que você não pode mais aventurar-se sozinho na noite. De hoje em diante, os entes da noite não o deixarão em paz.
— O que me aconteceu ontem à noite, Dom Juan?
— Encontrou por acaso uns entes que existem no mundo, e que agem sobre as pessoas. Você não sabe nada a respeito deles porque nunca os encontrou. Talvez fosse mais próprio chamá-los de entes das montanhas; não pertencem realmente à noite. Eu os chamo entes da noite porque nós os percebemos no escuro mais facilmente. Estão aqui, em volta de nós, a todas as horas. De dia, porém, é mais difícil percebê-los, simplesmente porque o mundo nos é conhecido, e aquilo que é conhecido tem precedência. No escuro, ao contrário, tudo é igualmente estranho e muito poucas coisas têm precedência, de modo que somos mais suscetíveis a esses entes da noite.
— Mas eles são reais, Dom Juan?
— Claro! São tão reais, que normalmente eles matam as pessoas, especialmente as que se perdem no mato e não têm poder pessoal.
— Se você sabia que eles eram tão perigosos, por que me deixou ali sozinho?
— Só há um meio de aprender… e este é fazendo as coisas. Só falar do poder não adianta. Se você quer saber o que é o poder, e se quer armazená-lo, tem de tratar de tudo você mesmo.
“O caminho para o conhecimento e o poder é muito difícil e muito longo. Você pode ter notado que não o deixei aventurar-se no escuro sozinho até ontem à noite. Não tinha suficiente poder para isso. Agora, você tem o suficiente para travar uma boa batalha, mas não para ficar sozinho no escuro.”
— O que aconteceria se eu ficasse?
— Você morreria. Os entes da noite o esmagariam como a um inseto.
— Isso significa que eu não posso passar uma noite sozinho?
— Pode passar a noite sozinho na cama, mas não nas montanhas.
— E as planícies?
— Isso só se aplica ao mato, onde não há pessoas em volta, especialmente o mato das altas montanhas. Como a morada natural dos entes da noite são as rochas e fendas, de agora em diante você não pode ir às montanhas, a não ser que tenha armazenado suficiente poder pessoal.
— Mas de que modo posso armazenar poder pessoal?
— Você o está fazendo vivendo da maneira que eu recomendei. Pouco a pouco, está tapando todos seus pontos de drenagem. Não precisa ser metódico nisso, pois o poder sempre dá um jeito. Veja meu exemplo. Eu não sabia que estava armazenando poder quando comecei a aprender as maneiras de um guerreiro. Como você, eu achava que não estava fazendo nada de especial, mas não era assim. O poder tem a peculiaridade de passar despercebido quando está sendo armazenado.
Pedi que explicasse como ele chegara à conclusão de que era perigoso para mim ficar sozinho no escuro.
— Os entes da noite se moveram à sua esquerda — disse ele. — Estavam procurando fundir-se com sua morte. Especialmente a porta que você viu. Era uma abertura, sabe, e o teria puxado, até você ser obrigado a transpô-la. E isso teria sido seu fim.
Mencionei a circunstância de que eu achava muito estranho que as coisas sempre acontecessem quando ele estava por perto, e que parecia que era ele quem preparava todos os fatos. As ocasiões em que eu estivera sozinho no mato de noite tinham sempre sido perfeitamente normais e sem acidentes. Eu nunca vira sombras nem ruídos estranhos. Na verdade, eu nunca me assustara com coisa alguma.
Dom Juan deu uma risada baixinho e disse que tudo era prova de que ele tinha suficiente poder pessoal para convocar mil coisas em seu auxílio.
Tive a impressão de que ele, talvez, estivesse sugerindo que tinha realmente convocado algumas pessoas como seus colaboradores. Dom Juan pareceu ler meus pensamentos e riu alto.
— Não se canse com explicações — falou. — O que eu disse não tem sentido para você, simplesmente porque ainda não possui suficiente poder pessoal. No entanto, tem mais do que quando começou, de modo que as coisas estão começando a lhe acontecer. Já teve um possante encontro com a névoa e os raios. Não é importante que você compreenda o que lhe aconteceu naquela noite. O importante é que você adquiriu a recordação daquilo. A ponte e tudo o mais que você viu naquela noite um dia se repetirão, quando você tiver suficiente poder pessoal.
— Com que finalidade tudo aquilo se repetirá, Dom Juan?
— Não sei. Não sou você. Só você pode responder a isso. Somos todos diferentes. Foi por isso que tive de deixá-lo sozinho ontem à noite, apesar de saber que era mortalmente perigoso; você tinha de se pôr à prova contra aqueles entes. O motivo pelo qual escolhi o pio da coruja foi porque essas aves são os mensageiros dos entes. Imitar o pio da coruja os faz aparecer. Eles se tornaram perigosos para você não porque sejam naturalmente malévolos, mas porque você não era impecável. Há alguma coisa muito fantasista em você, e eu sei o que é. Só me está fazendo a vontade. Você tem feito a vontade de todo mundo sempre, é claro, e isso o coloca automaticamente acima de todos e de tudo. Mas você mesmo sabe que não pode ser assim. É apenas um homem e sua vida é muito curta para compreender todas as maravilhas e todos os horrores deste mundo deslumbrante. Portanto, essa sua atitude de querer agradar é falsa; ela o reduz a uma dimensão mesquinha.
Eu queria protestar. Dom Juan me pegara, como já o fizera dúzias de vezes. Por um momento, fiquei zangado. Mas, como já tinha acontecido antes, quando comecei a escrever desliguei-me o suficiente, ficando impassível.
— Acho que tenho uma cura para isso — continuou ele, depois de um longo intervalo. — Até você concordaria comigo se se lembrasse do que fez ontem à noite. Correu tão depressa quanto qualquer feiticeiro, somente quando seu adversário se tornou insuportável. Nós dois sabemos disso e acredito que já encontrei um adversário valoroso para você.
— O que vai fazer, Dom Juan?
Não deu resposta. Levantou-se e esticou o corpo. Parecia contrair todos os músculos. Mandou que eu fizesse o mesmo.
— Você deve esticar o corpo muitas vezes durante o dia — disse ele. — Quanto mais vezes, melhor, mas somente depois de um longo período de trabalho ou de repouso.
— Que tipo de adversário você vai encontrar para mim? — perguntei.
— Infelizmente, só os nossos semelhantes são nossos adversários valorosos — respondeu. — Outros entes não têm vontade própria e a gente precisa ir encontrá-los e atraí-los. Nossos semelhantes humanos, porém, são inclementes.
— Já conversamos muito — falou, abruptamente, virando-se para mim. — Antes de partirmos, você tem de fazer mais uma coisa, a mais importante de todas. Vou-lhe dizer uma coisa agora, para você estar descansado quanto ao motivo por que está aqui. O motivo por que você continua a vir me ver é muito simples: cada vez que esteve comigo, seu corpo aprendeu certas coisas, mesmo contra seu desejo. E, afinal, seu corpo agora precisa de voltar para mim, para aprender mais. Digamos que seu corpo sabe que vai morrer, embora você nunca pense nisso. Assim, eu estive contando a seu corpo que também eu vou morrer e, antes de morrer, eu gostaria de mostrar a seu corpo algumas coisas, as quais você mesmo não lhe pode dar. Por exemplo, seu corpo precisa do temor. Gosta disso. Seu corpo precisa do escuro e do vento. Seu corpo agora conhece o passo do poder e mal pode esperar para experimentá-lo. Seu corpo precisa do poder e mal pode esperar para experimentá-lo. Seu corpo precisa do poder pessoal e mal pode esperar para tê-lo. Portanto, digamos que seu corpo volta para me ver porque eu sou amigo dele.
Dom Juan ficou calado por muito tempo. Parecia estar lutando com seus pensamentos.
— Já lhe disse que o segredo de um corpo forte não está no que você faz com ele, mas no que não lhe faz — falou, por fim. — Agora, chegou a hora de você não fazer o que faz sempre. Fique aqui sentado até partirmos e não faça.
— Não estou entendendo, Dom Juan.
Pôs as mãos sobre meus apontamentos e os tirou de mim. Cuidadosamente, fechou as páginas de meu caderno, prendeu-o com seu elástico e depois atirou-o como um disco dentro do chaparral.
Fiquei chocado e comecei a protestar, mas ele tapou minha boca com a mão. Apontou para um arbusto grande e disse-me que fixasse a atenção não nas folhas, mas nas sombras das folhas. Disse que correr no escuro não precisava de ser provocado pelo temor, e podia ser uma reação muito natural de um corpo jubilante que sabia o que “não fazer”. Ficou repetindo em meu ouvido direito que “não fazer o que eu sabia como fazer” era a chave do poder. No caso de olhar para uma árvore, o que eu sabia como fazer era focalizar imediatamente a folhagem. As sombras das folhas ou os espaços entre as folhas nunca me ocupavam. Suas últimas advertências foram para começar a focalizar as sombras das folhas de um único galho e depois, aos poucos, passar a toda a árvore e não deixar que meus olhos voltassem para as folhas, pois o primeiro passo propositado para armazenar o poder pessoal era permitir ao corpo “não fazer“.
Talvez fosse devido à minha fadiga ou excitação nervosa, mas fiquei tão absorto nas sombras das folhas que, quando Dom Juan se levantou, eu conseguia quase agrupar as massas escuras de folhagens tão bem como eu normalmente agrupava a folhagem. O efeito geral era espantoso. Eu disse a Dom Juan que gostaria de me demorar mais. Ele riu e deu um tapinha em meu chapéu.
— Já lhe disse — falou ele. — O corpo gosta de coisas como esta.
Depois, explicou que eu devia deixar que meu poder armazenado me guiasse pelas moitas até meu caderno. Empurrou-me delicadamente para o chaparral. Andei a esmo por um momento e depois encontrei-o. Pensei que, subconscientemente, eu devia estar lembrado da direção em que Dom Juan o atirara. Esclareceu o fato, dizendo que eu fora diretamente ao caderno porque meu corpo estivera mergulhado durante horas em “não fazer“.
(Carlos Castaneda, Viagem a Ixtlán)