“Quase que imediatamente depois de me encontrar, encontrou também a mulher duplicada. Não me pôs em contato com ela através de um esquema, como fizera o seu benfeitor, mas fez um plano, tão eficiente e elaborado quanto o de seu benfeitor, pelo qual ele próprio atraía e garantia a mulher duplicada. Assumiu esse encargo porque acreditava que era dever do benfeitor garantir os dois seres duplicados imediatamente após os ter encontrado, e depois reuni-los como sócios de uma empresa inconcebível.

Ele nos disse que um dia, quando vivia no Arizona, foi a uma repartição pública preencher um formulário. A senhora que o atendeu disse-lhe para levar o formulário a uma funcionária do departamento ao lado, e sem olhar apontou para a esquerda. Dom Juan seguiu a direção do braço estendido e viu uma mulher duplicada sentada na mesa. Quando lhe levou o formulário percebeu que ela era muito mocinha. Ela lhe disse que não tinha nada a ver com formulário, mas, com pena do índio velho, ajudou-o a resolver o problema.

Eram necessários alguns documentos legais, documentos que Dom Juan tinha no bolso, mas ele fingiu não entender nada e pareceu estar desprotegido. Agiu como se uma organização burocrática fosse um enigma para ele. Não foi nada difícil demonstrar total ignorância, disse Dom Juan; tudo o que teve de fazer foi voltar ao que era antes quando tinha um estado normal de conscientização. Era sua intenção prolongar sua interação com a mocinha por mais que pudesse. Seu mentor lhe dissera, e ele próprio verificara isso em sua busca, que as mulheres duplicadas são muito raras. Seu mentor também o avisara que elas tinham recursos internos que as faziam muito voláteis. Dom Juan teve medo dela sumir, se não jogasse as cartas como devia. Aproveitou seu espírito de solidariedade para ganhar tempo.

Criou mais demora, fingindo ter perdido os documentos e pedindo-lhe que os procurasse. Quase todos os dias levava um papel novo para ela. A mocinha os examinava e dizia que não era o papel necessário. Ficou tão tocada com a condição triste dele que chegou a se oferecer para pagar um advogado para lhe arranjar uma declaração juramentada em vez dos papéis.

Depois de três meses dessa manobra, Dom Juan achou que era hora de encontrar os documentos, Àquela altura ela tinha se acostumado com ele e quase que esperava vê-lo todos os dias. Dom Juan foi uma última vez expressar seus agradecimentos e se despedir. Disse a ela que gostaria de ter lhe dado um presente para mostrar seu agradecimento, mas que não tinha dinheiro nem mesmo para comer. Ela ficou comovida com a sinceridade dele e levou-o para almoçar. Quando estavam comendo ele brincou que um presente não tinha necessariamente de ser uma coisa comprada. Podia ser apenas uma coisa para ser olhada, uma coisa que trouxesse recordação, e não uma posse.

Ela ficou intrigada com as palavras dele. Dom Juan lembrou-lhe que ela tinha mostrado pena dos índios e de sua condição de pobreza. Perguntou se gostaria de ver os índios a uma luz diferente — não como pobres mas como artistas. Disse-lhe que conhecia um velho que era o último elemento de uma linha de dançarinos de poder.
Garantiu-lhe que o homem dançaria para ela se ela pedisse, e prometeu ainda que nunca na vida ela veria nada igual. Era uma coisa presenciada apenas pelos índios.

Ela ficou radiante com a idéia. Pegou-o depois do trabalho e foram os dois na direção das montanhas onde ele disse que os índios moravam. Dom Juan levou-a para a sua própria casa. Fez com que ela parasse o carro a uma certa distância e começaram a andar até chegar lá. Antes de chegarem à casa ele parou e desenhou uma linha com o pé na areia ressequida. Disse-lhe que a linha era um limite e insistiu que ela a atravessasse. A própria mulher nagual me disse que até aquele ponto ela tinha ficado muito intrigada com a possibilidade de presenciar uma verdadeira dança indígena, mas quando o índio velho desenhou a linha no chão e chamou-a de limite, ela começou a hesitar. Depois ficou muito alarmada quando ele lhe disse que o limite era apenas para ela, e que uma vez atravessada a linha não havia meio de retornar.

O índio aparentemente viu sua consternação e tentou deixá-la à vontade. Gentilmente deu um tapinha no seu braço e garantiu-lhe que ela não sofreria nada enquanto ele estivesse perto. O limite podia ser explicado, disse ele, como uma forma de pagamento simbólico ao dançarino, pois ele não aceitava dinheiro. O ritual substituía dinheiro, e a condição do ritual era que ela atravessasse o limite por vontade própria. O velho índio alegremente passou por cima da linha e lhe disse que para ele tudo aquilo era pura bobagem dos índios, mas que o dançarino, que os estava observando de dentro da casa, tinha de ser agradado se ela quisesse ver a dança.

A mulher nagual falou que subitamente ficou com tanto medo que não podia se mover nem para atravessar a linha. O velho índio fez um esforço para persuadi-la, dizendo que passar por cima da linha-limite beneficiava todo o corpo. Ao atravessá-la ele tinha não só se sentido mais moço como tinha realmente se tornado mais moço, tal era o poder da linha-limite. Para demonstrar esse ponto atravessou para o outro lado e imediatamente seus ombros caíram, os cantos da boca ficaram com uma prega e os olhos perderam o brilho. A mulher nagual não podia negar as diferenças produzidas pelo atravessar da linha.

Dom Juan reatravessou pela terceira vez. Respirou fundo, expandindo o peito, com movimentos rápidos e valentes. A mulher nagual disse que lhe veio à cabeça que ele poderia até ter melhorado sua possibilidade sexual. Seu carro estava longe demais para que ela corresse até lá. A única coisa que podia fazer era dizer a si própria que era uma boba de ter medo de um índio velho.

Então o velho fez um outro apelo à sua razão e ao seu senso de humor. Num tom de conspiração, como se estivesse revelando um segredo com relutância, disse-lhe que estava apenas fingindo ter rejuvenescido para agradar o dançarino, e que se ela não o ajudasse atravessando a linha ele iria desmaiar a qualquer instante pelo esforço de andar com uma postura tão ereta. Andou para frente e para trás da linha para mostrar-lhe o imenso esforço que fazia com sua pantomima.

A mulher nagual disse que seus olhos de súplica revelavam a dor imposta ao seu corpo ao fingir juventude. Atravessou a linha para ajudá-lo e acabar com a coisa; o que queria era voltar para casa.

No momento em que atravessou a linha, Dom Juan deu um pulo fantástico e deslizou por cima do telhado da casa. A mulher nagual disse que ele voou como se fosse um imenso bumerangue. Quando aterrissou ao seu lado ela caiu de costas. Seu medo era maior que qualquer coisa que jamais sentira, mas seu entusiasmo de ter presenciado tal maravilha também foi imenso. Nem ao menos perguntou como ele conseguira tal façanha. Queria correr de volta para o carro e ir para casa.

O velho ajudou-a a se levantar e desculpou-se por lê-la enganada Na verdade, disse, era ele o dançarino e seu vôo por cima da casa era sua forma de dança. Perguntou se ela tinha prestado atenção na direção do vôo. A mulher nagual fez um círculo com a mão na direção dos ponteiros do relógio. Ele deu uma palmadinha na cabeça dela paternalmente e lhe disse que era muito bom ela ser tão atenta. Depois falou que talvez ela tivesse machucado as costas quando caíra, e que não podia deixá-la ir embora sem se certificar de que ela estava bem. Esticou seus ombros, levantou seu queixo e a parte de trás da cabeça, como se estivesse levando-a a acertar a espinha. Depois deu um soco entre as suas omoplatas, tirando literalmente todo o ar dos seus pulmões. Por um instante ela não conseguiu respirar e desmaiou.

Quando voltou à consciência, estava dentro da casa. Seu nariz sangrava, os ouvidos zumbiam, a respiração estava acelerada, e os olhos não focalizavam bem. Ele lhe disse para respirar fundo oito vezes. Quanto mais ela respirava mais claras as coisas se tornavam. A uma certa altura, disse ela, o quarto inteiro ficou incandescente; tudo brilhava com uma luz âmbar. Ela ficou estupefata e não conseguiu mais respirar fundo. A luz âmbar já era tão espessa que lembrava uma névoa. Depois a névoa transformou-se em teia de aranha âmbar. Finalmente desapareceu, mas o mundo manteve-se uniformemente âmbar por mais algum tempo.

Dom Juan começou a falar com ela. Levou-a para fora da casa e mostrou-lhe que o mundo era dividido em duas metades. O lado esquerdo era claro, mas o direito era oculto por uma névoa âmbar. Disse-lhe que era monstruoso pensar que o mundo é compreensível ou que nós próprios somos compreensíveis. Disse que o que ela percebia era um enigma, um mistério que só se podia aceitar com humildade e respeito. Então revelou o regulamento a ela. A clareza da sua mente era tão intensa que ela compreendeu tudo o que ele disse. O regulamento lhe pareceu apropriado e muito claro.

Ele lhe explicou que os dois lados de um ser humano são totalmente separados, e que é necessário muita disciplina e determinação para quebrar a separação e passar de um lado para o outro. Um ser duplicado apresenta uma grande vantagem: a condição de duplicidade permite movimentos relativamente fáceis entre os compartimentos do lado direito. A grande desvantagem da duplicidade é que em virtude de terem dois compartimentos esses seres são sedentários, conservadores, avessos à mudança.

Dom Juan disse a ela que sua intenção tinha sido fazê-la mudar do seu compartimento de extrema direita para o seu lado esquerda mais lúcido, mais aguçado, mas que ao invés disso, por alguma singularidade inexplicável, o soco que lhe dera tinha-a feito atravessar toda a sua duplicidade, do lado de extrema direita para o lado de extrema esquerda. Tentou por quatro vezes fazer com que ela voltasse a um estado normal de conscientização, mas tudo em vão. Seus socos a ajudaram, contudo, a perceber a parede de névoa à vontade. Embora sem intenção, Dom Juan tinha tido razão ao dizer que a linha era um limite sem volta para ela. Uma vez atravessada, ela nunca retornaria, como aconteceu com Silvio Manuel.

Quando Dom Juan pôs a mulher nagual face a face comigo, nenhum de nós dois sabia da existência do outro, mas ainda assim sentimos instantaneamente que já nos conhecíamos de alguma forma. Dom Juan sabia por experiência própria que o conforto que os seres duplicados sentem na companhia um do outro é indescritível e breve demais. Disse-nos que estávamos reunidos por forças incompreensíveis à nossa razão, e que a única coisa que não tínhamos era tempo. Cada minuto podia ser o último; portanto, esse tempo tinha de ser vivido com o espírito.”

(O Presente da Águia, Carlos Castañeda)

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