“Dona Lucrecia tinha a aparência da bruxa clássica; seu rosto era temível, além dos olhos vesgos, ela tinha uma ruga no nariz e os dentes estavam faltando. Os companheiros já tinham me avisado sobre ela, diziam que estava louca e que era muito excêntrica. Uma de suas excentricidades, que haviam comentado, é que ela costumava ir a todos os velórios no seu povoado e que, às vezes, ela ia inclusive a funerais nas cidades vizinhas. Quando perguntamos por que ela fazia isso, ela nos explicou que, quando criança, tinha a capacidade de falar com os mortos e que gostava de conversar com eles quando ainda estavam frescos.

Um dos ajudantes perguntou por que dona Lucrécia se importava com os mortos.

– E por que não? – Respondeu com um ar de ameaça na voz – por acaso os vivos são mais importantes?

“Os desencarnados têm grandes possibilidades de prolongar a duração da consciência no outro mundo, assim como nós; infelizmente, as experiências da memória os atrapalha, da mesma maneira como somos estorvados pela ofuscação do mundo cotidiano. Quando alguém lhes diz sobre suas possibilidades, eles ignoram, ficam emaranhados em suas memórias e assim vão se consumindo pouco a pouco, até que não sobra nada.

“Eu ajudei centenas a encontrar o caminho para a luz; a maioria, quando chega lá, está mais perdida que um frango sem cabeça, nada faz sentido para eles. Alguns mal chegam e já nem sequer mais sabem quem eram ou de onde vieram; outros vão rapidinho procurar suas fantasias “.

– A quais fantasias está se referindo? – perguntaram.

Ela respondeu:

– Quando as pessoas morrem, às vezes é muito difícil para elas largarem o mundo dos vivos, sempre se agarram às coisas. Todas estão cheias de idéias e fantasias de como o outro lado deveria ser; por isso que, quando se chega lá, é exatamente isso o que encontram. Para aqueles que morrem, o que vêem é o que esperavam encontrar lá; No entanto, os videntes que visitam esse lugar os vêem como se estivessem paralisados, olhando para o nada.

Disse que nesse lugar há multidões de consciências que permanecem estáticas como zumbis. Os videntes afirmam que estão revivendo suas memórias, recontando suas experiências pela última vez. Alegam que é assim que se sabe quando estão em processo de serem consumidos pela Águia.

Naquela mesma noite, ela nos contou sobre um de seus terríveis encontros com os mortos; explicou que muitos voltavam para interferir como podiam no mundo cotidiano. Nos contou a história de um jovem que morreu em um acidente de moto e que tinha amado uma menina loucamente.

– Quando fui ao funeral, vi o jovem vagando no meio dos presentes; Ele ainda estava usando sua jaqueta de couro preta. Ninguém podia vê-lo, mas pude notar que quando ele se aproximava de alguém, a pessoa ficava desconfortável e depois mudava de lugar. Por muito tempo fiquei observando ele. Quando o rapaz percebeu que eu podia vê-lo, veio falar comigo. Por um momento, fingi não ouvi-lo, depois fui para um lugar mais reservado e perguntei o que ele queria. Ele me pediu para entrar em contato com a namorada e dizer o quanto ele a amava.

“Eu fiquei brava com ele, disse que mesmo a morte não tirava sua estupidez. Nós conversamos por um longo tempo e nos tornamos amigos. Comecei então a explicar-lhe sobre os brujos e sobre como eles usam o conhecimento para continuar existindo naquele outro nível de consciência. Eu o mantive comigo por vários anos, ensinei-lhe tudo o que é necessário para que ele pudesse aumentar suas chances de sobrevivência em sua jornada através daquele mundo cruel, lá do outro lado “.

Uma das mulheres lhe perguntou sobre Anita; ela respondeu que ela estava bem e que continuava a aumentar suas habilidades.

Nós queríamos saber quem era Anita. Ela respondeu que era sua filhinha, sua filha, mas não aquela que havia saído de seu ventre. Explicou:

– Eu a encontrei em um velório, fiquei surpresa ao ver que ela também podia ver aqueles que foram embora. Falei com ela e pude ver que a garota tinha dons, sua percepção era muito fluida. Perguntei se ela precisava de ajuda, pois parecia perdida.

“Ela me disse que havia deixado sua casa seguindo um espírito, e que acabou naquele lugar. É muito comum que maus espíritos desviem crianças de seus caminhos para prejudicá-las ou até mesmo matá-las, mas felizmente, desta vez, não foi esse o caso.

“Ela me disse que seu nome era Anita. Perguntei se ela sabia como voltar para casa. A garota abaixou a cabeça e sacudiu os ombros como se dissesse: quem sabe? ou o que isso importa?

“Eu a levei para casa naquela noite, esperava poder devolvê-la a sua família no dia seguinte; O fato é que eu perguntei por todo o povoado e ninguém a conhecia ou sabia nada sobre ela. Até fui na polícia, mas eles sabiam ainda menos que os outros.

“Agora vive comigo. Estou ajudando-a a desenvolver suas habilidades, ela está se tornando uma pequena bruja muito poderosa. “

Quando uma ocasião mais propícia surgiu, movido pela curiosidade, voltei a perguntar a Dona Lucrecia sobre a guerra dos brujos, ela me disse que se eu fosse visitá-la em sua casa, me contaria tudo. Nunca fui.”

(O Segredo da Serpente Emplumada, Armando Torres)

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