Devaneio – Quando o Intento fala em imagens

No caminho tolteca, aquilo que chamamos em português de devaneio corresponde exatamente ao que Don Juan nomeava em espanhol como ensueño e ao que os livros em inglês de Castaneda traduzem como daydreaming em algumas passagens. Ainda que, em usos cotidianos, esses termos possam remeter à ideia de imaginação solta ou distração mental, no contexto do Nagualismo eles ganham um sentido muito mais preciso e profundo: referem-se à capacidade de deslocar o ponto de encaixe para fora da configuração ordinária da realidade, acessando diretamente a Segunda Atenção através de imagens vivas, símbolos ativos e experiências perceptivas não lineares. Ensueño, devaneio ou daydreaming — são apenas nomes diferentes para a mesma prática energética: a arte de ver com os olhos do Intento.

Há uma linha tênue — delicada como o brilho da lua sobre um lago — que separa a imaginação voluntária do verdadeiro devaneio, e é justamente sobre esse espaço sutil que o guerreiro precisa aprender a caminhar. À primeira vista, fantasia e devaneio parecem vestir roupas semelhantes: ambas trazem imagens, cenários internos, vozes que falam dentro do pensamento. Contudo, basta contemplá-las com olhos um pouco mais atentos para perceber que o parentesco é apenas aparente, pois aquilo que chamamos de devaneio autêntico não brota de um impulso pessoal de controlar ou colorir a experiência, mas de um sopro mais vasto que se acomoda sobre o silêncio quando a vontade do eu se recolhe.

Fantasiar é produzir, enquanto devanear é receber; a fantasia se alimenta do ego e o conforta, dirigindo o roteiro segundo as expectativas de quem sonha acordado, ao passo que o devaneio chega como uma visita imprevista que, sem pedir licença, abre portas no fundo da percepção e traz consigo uma densidade que nenhuma invenção mental consegue imitar. Nas fantasias, as cenas podem ser intrigantes, mas logo se dissolvem como fumaça ao primeiro vento da distração; já no devaneio verdadeiro, a visão deixa uma pegada na areia interior, marca o corpo energético com um arrepio, um calor, um silêncio prolongado, e permanece ressoando mesmo quando o entendimento racional ainda não sabe explicar o que aconteceu.

Para que essa distinção se torne nítida, o caminho oferece um tripé de práticas que se sustentam e se alimentam mutuamente. Primeiro surge a espreita, arte de vigiar os próprios pensamentos com a lâmina afiada da atenção, desmontando hábitos de autocomiseração, máscaras do ego e histórias pessoais que tentam se reafirmar a cada instante; quando a espreita é exercida com rigor, o terreno interno vai se limpando de ervas daninhas e, pouco a pouco, surge um espaço não ocupado por diálogos automáticos nem por emoções reativas. Esse espaço é o silêncio interior: não se trata de um vazio morto, mas de um campo fértil onde nenhum ruído mental se impõe e onde, justamente por isso, algo novo pode germinar. É então — e apenas então — que o devaneio se apresenta, não como fruto de uma escolha temática (“quero devanear sobre isto ou aquilo”), mas como resultado da ressonância entre o guerreiro silencioso e o Intento que, encontrando a casa limpa, resolve sentar-se à mesa e derramar imagens vivas, cheias de intenção e mistério.

Quando a visão chega, ela surpreende: não confirma expectativas, não obedece à estética pessoal do sonhador, muitas vezes não traz conforto algum; ainda assim, carrega uma chama reconhecível que toca o peito, o plexo, às vezes o ventre, deixando na pele interna sinais que o pensamento não pode apagar. É nesse instante que o devaneador compreende, sem necessidade de palavras, que o conteúdo não foi escolhido — foi concedido — e que sua tarefa não é dirigir a cena, mas testemunhar com lucidez impecável o que quer que se desdobre diante dele.

Tal postura enraíza um paradoxo precioso: o devaneador se entrega, mas não se perde; mantém-se receptivo como um espelho silencioso, porém desperto como um guardião que vigia a própria atenção. Ele não interfere — e, no entanto, participa com corpo inteiro. Assim, o ponto de aglutinação, liberto da tenaz da narrativa cotidiana, desloca-se, e junto com ele desloca-se a realidade perceptiva, revelando geometrias que não podem ser descritas senão por meio das próprias imagens que se manifestam. O devaneio, quando autêntico, transforma; não reafirma identidades antigas, mas dissolve fronteiras, rasga véus, introduz o praticante em regiões onde o eu, por vezes, precisa morrer simbolicamente para renascer mais leve.

Por isso a ordem é inegociável: sem espreita, o devaneio degenera em delírio sedutor; sem devaneio, a espreita resseca em mero controle narcisista; sem silêncio, ambos se misturam num ruído confuso. O guerreiro que ignora essa arquitetura interna corre o risco de girar em falso, acreditando viver experiências extraordinárias quando, na verdade, apenas recicla velhas projeções. Já aquele que honra a sequência — vigia primeiro o ego, cria depois o vazio fecundo, e enfim se oferece ao mistério — aprende que o verdadeiro conteúdo não se pede: apresenta-se quando o Intento encontra lugar.

Eis, portanto, a essência deste tratado breve: o devaneador não escolhe. Ele não determina o assunto, não programa a visão, não convoca símbolos a seu bel-prazer. Sua única escolha real é preparar-se com disciplina e pureza, rendendo-se em seguida ao que deseja ser visto através dele. E quando, por fim, a cena se ergue no palco escuro do silêncio, ele sabe que tudo o que lhe cabe é olhar — e deixar que o olhar, tocado por algo maior, se transforme no próprio ato de ver.

Se algumas dúvidas persistirem, recorde a regra simples que Don Juan sussurraria na penumbra do deserto: “Se você pode prever o que vai aparecer, é fantasia; se o que apareceu não deixa eco no corpo nem muda você, é invenção; mas se o inesperado lhe toma, marca o seu brilho e silencia suas perguntas, então, meu amigo, você tocou o verdadeiro devaneio.”

Gebh al Tarik

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