Delia fala sobre a Escravidão Silenciosa da Mulher

— Estamos atravessando terras mágicas — informou, ao mesmo tempo em que saboreava o delicioso chocolate —, terras mágicas habitadas por guerreiros.

— E quem são esses guerreiros? — perguntei, não querendo parecer condescendente.

— Os Yaquis de Sonora — respondeu, ficando logo depois em silêncio, talvez medindo minha reação. — Admiro os índios Yaquis, pois têm vivido constantemente em guerra. Primeiro com os espanhóis e logo depois com os mexicanos, e isso até épocas tão recentes como 1934. Ambos têm experimentado a selvageria, a astúcia e a severidade dos guerreiros Yaquis.

— Não admiro a gente guerreira — disse. E logo, como para desculpar meu tom belicoso, expliquei que eu era proveniente de uma família alemã destroçada pela guerra.

— Seu caso é diferente — sustentou. — Você não possui os ideais da liberdade.

— Um momento — protestei —, é precisamente porque possuo os ideais da liberdade que acho a guerra tão abominável.

— Estamos falando de dois tipos diferentes de guerra — insistiu.

— A guerra é a guerra — insisti.

— Seu tipo de guerra — prosseguiu, ignorando minha interrupção — é entre dois irmãos, ambos chefes, que lutam pela supremacia. — Se aproximou e, num sussurro urgente, acrescentou: — O tipo de guerra ao qual eu me refiro é entre um escravo e um patrão que acredita ser o dono da gente. Entende a diferença?

— Não, não a compreendo — respondi, teimosa, e repeti que a guerra era a guerra, independentemente de suas razões.

— Não posso estar de acordo contigo — disse ela, suspirando fundo e reclinando-se no assento. — Talvez a razão de nosso desacordo filosófico radique em que provimos de distintas realidades sociais.

Assombrada pelas palavras pronunciadas por Delia, automaticamente diminuí a marcha do carro. Não desejava ser descortês, mas escutar de sua boca essa sequência de conceitos acadêmicos era algo tão incongruente e inesperado que não pude evitar rir. Delia não se ofendeu. Me observou sorridente, muito satisfeita de si mesma.

— Quando chegar a conhecer meu ponto de vista pode ser que mude sua opinião — e disse isto com tal seriedade, mas não isenta de carinho, que senti vergonha por ter rido. — Até pode desculpar-se por rir de mim — acrescentou, como se tivesse lido meus pensamentos.

— Peço desculpas, Delia — disse com total sinceridade —, sinto muito ter sido descortês, mas me surpreenderam tanto suas declarações que não soube o que fazer — olhei-a de soslaio antes de agregar, compungida: — De modo que ri.

— Não me referia a desculpas sociais por seu comportamento — respondeu, e sacudiu a cabeça para evidenciar sua desilusão —, me refiro a desculpas por não haver compreendido a condição do homem.

— Não sei do que você está falando — respondi, incomodada. Sentia que seus olhos me perfuravam.

— Como mulher deveria entender muito bem essa condição. Tem sido uma escrava toda sua vida.

— Do que está falando, Delia? — perguntei, irritada por sua impertinência, mas de imediato me acalmei, pensando que sem dúvida a pobre índia tinha um marido prepotente e insuportável.

— Acredite em mim, Delia. Sou inteiramente livre. Faço o que quero.

— Talvez você faça o que quer, mas não é livre — insistiu. — Você é mulher, e isso automaticamente significa que está à mercê dos homens.

— Não estou à mercê de ninguém! — gritei.

Não sei se foi minha afirmação ou o tom de minha voz que fizeram com que Delia se desatasse em gargalhadas, tão fortes como as minhas de momentos antes.

— Parece estar gozando de sua vingança — observei, incomodada. — Agora é a sua vez de rir, não é?

— Não é o mesmo — replicou, repentinamente séria. — Você riu de mim porque se sentia superior. Escutar a uma escrava que fala como seu amo sempre diverte ao amo por um momento.

Desejei interrompê-la, dizer-lhe que nem me havia passado pela cabeça pensar nela como uma escrava, ou nem a mim como um amo, mas ela ignorou meus esforços, e no mesmo tom solene explicou que o motivo pelo qual havia rido de mim era porque eu me achava cega e estúpida ante minha própria feminilidade.

— O que está acontecendo, Delia? — perguntei intrigada. — Você está me insultando deliberadamente.

— Muito certo — respondeu rindo, por completo indiferente à minha raiva crescente. Logo depois, golpeando-me forte no joelho, acrescentou: — O que me preocupa é que você não sabe que, pelo simples fato de ser mulher, é escrava.

Recorrendo a toda a paciência que pude reunir disse-lhe que estava equivocada:

— Ninguém é escravo hoje em dia.

— As mulheres são escravas — insistiu Delia —, os homens as escravizam. Eles aturdem às mulheres, e seu desejo de nos marcar como propriedades suas nos envolve em névoa, a névoa resultante se prende a nós como uma bigorna.

Meu olhar vazio a fez sorrir. Recostou-se no assento, abraçando o peito com as mãos.

— O sexo desorienta as mulheres — acrescentou de maneira suave, mas enfática —, e o faz tão irrefutavelmente que não podem considerar a possibilidade de que sua baixa condição seja a consequência direta do que se lhes faz sexualmente.

— Essa é a coisa mais ridícula que jamais escutei — declarei; logo, pesadamente, embarquei numa longa discussão acerca das razões sociais, econômicas e políticas que explicavam a baixa condição da mulher.

Com grande detalhe falei das mudanças ocorridas nas últimas décadas, e de como as mulheres haviam tido bastante êxito em sua luta contra a supremacia masculina. Incomodada com sua expressão irreverente, não pude conter o comentário de que ela, sem dúvida, era vítima dos prejuízos de sua própria experiência e perspectiva do tempo.

Todo o corpo de Delia começou a sacudir-se com o esforço que fazia para controlar seu riso. Conseguiu fazê-lo e me disse:

— Na realidade nada mudou. As mulheres são escravas. Temos sido criadas como escravas. As escravas que foram educadas estão hoje atarefadas denunciando os abusos sociais e políticos cometidos contra a mulher. Não obstante, nenhuma dessas escravas pode enfocar a raiz de sua escravidão — o ato sexual — a não ser que envolva um estupro, ou esteja relacionado com alguma forma de abuso físico — um leve sorriso adornou seus lábios quando disse que os religiosos, os filósofos e os homens da ciência têm mantido durante séculos, e certamente o seguem fazendo, que tanto os homens como as mulheres devem seguir um imperativo biológico ditado por Deus, que diz respeito diretamente à sua capacidade sexual reprodutiva.

— Temos sido condicionadas para acreditar que o sexo é bom para nós — ressaltou. — Esta crença e aceitação inata nos tem incapacitado para fazer a pergunta certa.

— E qual é essa pergunta? — inquiri, esforçando-me para não rir de suas convicções totalmente erradas.

Delia pareceu não haver me escutado; esteve tanto tempo em silêncio que pensei se haveria dormido, e por isso me surpreendeu quando disse:

— A pergunta que ninguém se atreve a fazer é: o que o ato de que nos montem nos faz a nós, mulheres?

— Vamos, Delia… — retruquei jocosamente.

— O aturdimento da mulher é tão total que enfocamos qualquer outro aspecto de nossa inferioridade, menos aquele que é a causa de tudo — manteve.

— Mas Delia — disse rindo —, não podemos viver sem sexo. O que seria do gênero humano se…?

Parou minha pergunta e meu riso com um gesto imperativo de sua mão.

— Hoje em dia mulheres como você, em sua febre por se igualar ao homem, imitam-no, e o fazem até o extremo absurdo de que o sexo que lhes interessa não tem nada que ver com a reprodução. Equiparam o sexo à liberdade, sem sequer considerar o que o sexo faz a seu bem-estar físico e emocional. Temos sido tão cabalmente doutrinadas que acreditamos firmemente que o sexo é bom para nós — me tocou com o cotovelo e, como se estivesse recitando uma ladainha, acrescentou: — O sexo é bom para nós. É agradável, é necessário. Alivia as depressões, as repressões e as frustrações. Cura as dores de cabeça, a hipertensão e a pressão baixa. Faz desaparecer as espinhas da cara. Faz crescer a bunda e os seios. Regula o ciclo menstrual. Resumindo: é fantástico! É bom para as mulheres. Todos o dizem. Todos o recomendam. — Fez uma pausa para depois declamar com dramática finalidade: — Não há mal que uma boa trepada não cure.

Suas declarações me pareceram muito engraçadas, mas de repente fiquei séria ao recordar como minha família e amigos, inclusive nosso médico particular, o haviam sugerido (é claro que não de maneira tão crua) como uma cura para todos os males da adolescência que me angustiavam por crescer em um meio tão estritamente repressivo. Havia dito que, ao casar-me, teria ciclos menstruais regulares, aumentaria de peso e dormiria melhor. Inclusive adquiriria uma disposição de ânimo mais doce.

— Não vejo nada de mal em desejar sexo e amor — me defendi. — Minhas experiências neste sentido têm sido muito prazerosas, e ninguém me domina ou atordoa. Sou livre! Eu faço com quem quero e quando quero.

Nos olhos escuros de Delia vi um lampejo de alegria ao dizer:

— O fato de escolher seu companheiro não altera o fato de que te montam. — Em seguida sorriu, como para mitigar a aspereza de seu tom, e acrescentou: — Equiparar o sexo com a liberdade é a suprema ironia. A ação de aturdir, por parte do homem, é tão completa, tão total, que nos tem drenado a energia e a imaginação necessárias para enfocar a verdadeira causa de nossa escravidão. — Logo enfatizou: — Desejar a um homem sexualmente, ou enamorar-se romanticamente por um, são as únicas opções dadas às escravas, e tudo o que nos tem sido dito acerca dessas duas opções não são outra coisa que desculpas, que nos submergem na cumplicidade e na ignorância.

Indignei-me, pois não podia deixar de pensar nela como uma reprimida que odiava os homens.

— Por que odeia tanto os homens, Delia? — perguntei, apelando ao meu tom mais cínico.

— Não me desagradam — assegurou —, ao que me oponho apaixonadamente é à nossa renúncia a examinar quão profundamente doutrinadas estamos. A pressão que têm exercido sobre nós é tão terrível e fanática que nos convertemos em cúmplices complacentes. Aquelas que se animam a discordar são rotuladas como monstros que detestam os homens, e sofrem a conseguinte zombaria.

Corada, observei-a sub-repticiamente, e decidi que ela podia falar de forma depreciativa do amor e de sexo, pois, no fim das contas, era velha, e por estar mais além de todo desejo.

Rindo contidamente, Delia colocou as mãos atrás da cabeça. — Meus desejos físicos não caducaram porque seja velha — confessou —, e sim porque me foi dada a oportunidade de usar minha energia e imaginação para converter-me em algo diferente da escrava para a qual me criaram.

Porque havia lido meus pensamentos me senti mais insultada que surpreendida. Comecei a defender-me, mas minhas palavras só provocaram sua risada. Quando parou de rir me encarou; seu rosto mostrava-se tão sério e severo como o de uma professora a ponto de dar uma reprimenda a um aluno.

— Se você não é uma escrava, como é que te criaram para ser uma Hausfrau que não pensa em outra coisa que em heiraten e em seu futuro Herr Gernahl que dich mitnehmen?

Ri tanto ante seu uso do alemão, que precisei parar o carro para não correr o risco de bater, e meu interesse por averiguar de onde havia aprendido tão bem esse idioma fez com que esquecesse de defender-me de sua pouco lisonjeira acusação, de que tudo o que eu ambicionava na vida era encontrar um marido que se unisse comigo. Com respeito a seu conhecimento de alemão, apesar de minhas insistentes súplicas, manteve-se desdenhosamente refratária a fazer revelações.

— Você e eu teremos tempo de sobra no futuro para falar em alemão — assegurou, e depois de me olhar de forma irreverente, completou — ou do fato de ser uma escrava — e adiantando-se à minha réplica, sugeriu que falássemos de algo impessoal.

(Florinda Donner, Sonhos Lúcidos)

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