Um retrato dos guerreiros, espreitadoras e sonhadoras do grupo de dom Juan

Nessa casa me relacionei e lidei com todas as feiticeiras do grupo do nagual Mariano Aureliano, que não me ensinaram feitiçaria, nem sequer a ensonhar. Segundo elas, não havia nada para ensinar. Disseram que minha tarefa era recordar de tudo o que aconteceu entre elas e eu durante esses momentos iniciais de nossa convivência, em especial tudo o que Zuleica e Florinda me fizeram ou disseram, mas Zuleica nunca me havia dirigido a palavra.

Quando tentava pedir-lhes ajuda recusavam fazê-lo. Seu argumento era que sem a necessária energia de minha parte só lhes sobrava repetir-se, e não dispunham de tempo para isso. A princípio sua negativa me pareceu injusta e nada generosa, mas depois de um tempo abandonei toda tentativa de indagá-las, e me dediquei a desfrutar de sua presença e de sua companhia. Cheguei assim a aceitar sua razão para não querer jogar nosso jogo intelectual predileto, esse de pretextar interesse nas assim chamadas perguntas profundas, que usualmente nada significam para nós pela verdadeira razão de que não possuímos a energia para utilizar com proveito a resposta que possamos receber, exceto para estar ou não de acordo com ela.

Não obstante, graças a essa diária inter-relação, cheguei a compreender muitas coisas acerca de seu mundo. As ensonhadoras e as espreitadoras representavam duas formas de comportamento entre mulheres, muito distintas entre si. Inicialmente me perguntei se o grupo que me havia sido descrito como ensonhadoras: Nélida, Hermelinda e Clara, eram na realidade as espreitadoras pois, até onde eu podia determinar, minha relação com elas era sobre uma base estritamente mundana e superficial. Somente mais tarde pude dar-me conta de que sua mera presença provocava em mim uma nova maneira de comportamento. Com elas não necessitava reafirmar-me. De minha parte não existiam dúvidas nem perguntas. Possuíam a singular habilidade de fazer-me ver, sem necessidade de verbalizá-lo, o absurdo de minha existência, apesar do qual não achava necessário defender-me.

Talvez fosse esta ausência de esforço o que me levou a aceitá-las sem resistência, e não levei muito tempo para dar-me conta de que as ensonhadoras, ao tratar-me num nível mundano, me estavam proporcionando o modelo necessário para recanalizar minhas energias. Desejavam que eu mudasse minha maneira de enfocar assuntos cotidianos tais como cozinhar, limpar, estudar ou ganhar a vida. Disseram-me que essas tarefas deviam fazer-se com distintos auspícios, não como tarefas mundanas, e sim como esforços artísticos, todos de igual importância. Sobretudo foi sua mutua inter-relação, e sua relação com as espreitadoras, o que me deu a pauta do quão especial eram. Em seu trato habitual careciam de falhas humanas. Seu sentido de dever coexistia facilmente com suas características individuais, fossem estas o mau gênio, a irritabilidade, grosseria, loucura ou doçura excessiva. Na presença e companhia de qualquer destas feiticeiras eu experimentava a rara sensação de estar em férias permanentes, só que isso era uma miragem, pois elas viviam em permanente estado de guerra, sendo o inimigo a idéia do “eu”.

Vicente Medrano

Na casa delas conheci a Vicente e Silvio Manuel, os outros dois feiticeiros do grupo de Mariano Aureliano. Vicente era obviamente de origem espanhola, e soube que seus pais eram oriundos da Catalunha. Era magro, de aspecto aristocrático, com mãos e pés que davam uma errônea impressão de fragilidade. Andava sempre em alpargatas, e preferia blusas de pijamas (pendiam abertas sobre suas calças caqui) a camisas. Suas bochechas eram rosadas apesar de sua palidez. Ostentava uma barbinha que cuidava com esmero, a qual lhe conferia um toque de distinção a seu porte abstraído.

Não só parecia, como era de fato um erudito; os livros no quarto que eu ocupava eram seus, ou melhor, era ele quem os colecionava, lia e cuidava. O atraente de sua erudição (sabia de tudo) era que se portava como se fosse um perpétuo aprendiz. Eu tinha a certeza de que não era assim, pois era óbvio que sabia mais que os outros, e seu espírito generoso o levava a compartilhar seus conhecimentos com magnífica naturalidade e humildade, já que jamais envergonhava a terceiros por saber menos que ele.

Silvio Manuel

Silvio Manuel era de média estatura, corpulento, sem pelos e moreno. Um índio sinistro e misterioso, perfeito exemplo da imagem que eu me havia formado do que deveria ser um bruxo. Sua aparente taciturnidade me assustava, e suas lacônicas respostas revelavam o que eu suspeitava ser uma natureza violenta. Somente ao conhecê-lo melhor compreendi o muito que gozava cultivando essa imagem. Acabou se mostrando ser o mais aberto e, para mim, o mais encantador de todos os feiticeiros. As intrigas e os segredos eram sua paixão, fossem ou não autênticos, e era a maneira em que os contava o que, para mim e para todos, não tinha preço. Além disso, possuía um inextinguível repertório de piadas, a maioria delas pesadas, sujas. Era o único que se divertia vendo TV, e portanto sempre estava em dia com as notícias do mundo, as quais transmitia aos outros, grosseiramente exageradas e temperadas com uma grande dose de malícia.

Silvio Manuel era um excelente bailarino, e era legendária sua habilidade e seus conhecimentos das várias danças sagradas indígenas. Se movia com extático abandono, e com frequência me pedia que dançasse com ele. Fosse a dança um joropo venezuelano, uma cumbia, um samba, um tango, o twist, rock and roll ou um bolero dos que se dançam de rosto colado, conhecia a todas.

Juan Tuma

Também interagi com John, o índio que me apresentou o nagual Mariano Aureliano em Tucson, Arizona. Seu aspecto rotundo, inalterável e jovial não era outra coisa que uma fachada, pois era o menos abordável dos feiticeiros. Conduzindo sua camionete se encarregava dos recados de todos, e também reparava o que precisava ser consertado dentro e ao redor da casa.

Se me mantinha em silêncio, não o incomodando com perguntas e comentários, John me permitia acompanhá-lo em suas viagens, e me ensinava a consertar coisas: banheiros, torneiras e máquinas de lavar roupas, e também como reparar uma placa, comutadores elétricos, e lubrificar e mudar as velas de meu automóvel. Ensinada por ele, o uso de martelos, chaves-de-fenda e serras se converteu em tarefa fácil para mim.

Isidoro Baltazar (Carlos Castaneda)

A única coisa em que não me ajudaram foi em responder às minhas perguntas e averiguações acerca de seu mundo, e quando intentava comprometê-los se referiam ao nagual Isidoro Baltazar. Sua recusa usual era: “Ele é o novo nagual, e é missão dele lidar com você. Nós somos meramente seus tios e tias”.

Inicialmente o nagual Isidoro Baltazar representava para mim algo mais que um mistério. Não tinha bem claro onde residia, pois indiferente a horários e rotinas, aparecia e desaparecia do estúdio a toda hora. O dia e a noite lhe eram indiferentes. Dormia quando estava cansado, quase nunca, e comia quando tinha fome, quase sempre. Em meio às suas frenéticas idas e vindas trabalhava com uma concentração na verdade assombrosa, sendo sua capacidade para esticar ou comprimir o tempo incompreensível para mim. Tinha a certeza de ter passado horas, e até dias inteiros com ele, quando na realidade poderiam ter sido só momentos, furtados aqui e ali, seja lá durante o dia ou a noite, ou a outras de suas desconhecidas atividades.

Sempre me considerei uma pessoa ativa, cheia de energia, mas descobri que me era impossível manter-me a par de seu ritmo. Vivia em permanente movimento — ou assim parecia —, ágil e ativo, sempre pronto para encarar algum projeto. Seu vigor era permanente e francamente incrível.

Muito tempo depois cheguei a compreender que a fonte da inesgotável energia de Isidoro Baltazar residia em sua falta de preocupação por si mesmo, e foi seu permanente apoio, suas imperceptíveis e por sua vez hábeis maquinações, as que me mantiveram na senda correta. Residia nele uma alegria, um gozo em sua sutil e contudo poderosa influência, que me levou a mudar sem que eu notasse que estava sendo conduzida por um novo caminho, um caminho em que já não valiam os jogos, os pretextos ou o uso de minhas argúcias femininas para conseguir meus propósitos.

O que tornou tão urgente sua guia e conselhos era o fato de que não o abrigavam motivos ulteriores. Não era possessivo, e sua diretiva não se via adulterada por promessas ou atos de sentimentalismo. Não me empurrou em nenhuma direção precisa, ou seja, não me aconselhou a respeito do rumo a se tomar ou aos livros que devia ler. Nisso tive caminho livre. (…)

Nelida e Florinda

Para mim a mais chamativa era Nélida, que se parecia tanto a Florinda que a princípio pensei que fossem gêmeas. Não só era alta e delicada como Florinda, como tinha a mesma cor de olhos, cabelo e pele. Até suas expressões eram idênticas. Também se pareciam no temperamento, apesar de que se poderia dizer que Nélida que era mais suave, menos dominante. Dava a impressão de não possuir a sabedoria e a força energética de Florinda, mas sim uma energia paciente e silenciosa, muito reconfortante.

Hermelinda e Carmela

Quanto à Hermelinda, com muita facilidade poderia ter passado por irmã menor de Carmela. Seu corpo pequeno e delicado, de apenas um metro e cinquenta e sete centímetros, era delicadamente arredondado, e seus modos esquisitos. Dava a impressão de possuir menos autoconfiança que Carmela. Sua fala era doce, e se movia com meneios rápidos e bruscos, não livre de graça. Suas companheiras me confiaram que sua timidez e sossego faziam com que aqueles que lidavam com ela tendessem a se mostrar sob suas melhores luzes, e também que não poderia manejar a um grupo, nem sequer a duas pessoas por vez.

Clara e Delia

Clara e Delia formavam um estupendo par de travessas. A princípio pareciam ser de grande tamanho, mas era sua robustez, vigor e energia o que se fazia pensar nelas como em mulheres gigantescas e indestrutíveis. Dedicavam‐se a jogos deliciosamente competitivos, e com o menor pretexto exibiam vestimentas excêntricas. Ambas tocavam muito bem o violão, possuíam lindas vozes, e rivalizavam cantando não só em espanhol como em inglês, alemão, francês e italiano. Seu repertório incluía baladas, canções folclóricas e todo tipo de canção popular, inclusive os mais recentes sucessos pop. Não era necessário mais que cantarolar a primeira linha de uma canção, e já Clara e Delia a completavam. Também organizavam competições poéticas, escrevendo versos para as ocasiões em que se apresentavam. A mim me haviam dedicado poemas que depois atiravam embaixo da minha porta sem assinar, devendo eu adivinhar quem o havia escrito, e ambas sustentavam que se a amava como ela a mim, a intuição se encarregaria de revelar‐me o nome da autora. O atraente destas competições era a ausência de segundas intenções. Seu objetivo era entreter, não o de vencer o oponente, e desnecessário dizer que Clara e Delia se divertiam junto com quem as assistia. Se alguém lhes caía nas graças, como parecia ter‐lhes caído eu, seu afeto e lealdade não tinham limite. Ambas me defenderam com assombrosa perseverança, ainda que eu estivesse errada, pois para elas eu era perfeita e incapaz de errar. Elas me ensinaram que manter essa confiança significava para mim uma dupla responsabilidade, e não foi propriamente o meu temor em decepcioná‐las e sim que, para mim, acabou sendo natural acreditar‐me perfeita, o que fez com que me comportasse com elas de maneira impecável.

Zuleica

A mais estranha das mulheres feiticeiras era minha suposta professora na arte de ensonhar, Zuleica, que nunca me ensinou nada. Jamais me dirigiu a palavra, e talvez nem sequer chegou a reparar em minha existência. Zuleica, assim como Florinda, era muito bonita, talvez não tão chamativa mas sim bela, num sentido mais etéreo. Era pequena, e seus olhos escuros com suas sobrancelhas aladas, e sua boca e nariz,
perfeitos, estavam emoldurados por cabelos escuros e ondulados, próximos do grisalho, que acentuavam sua aura de ser de outro mundo. Não era a sua uma beleza normal, e sim sublime, moderada por seu implacável autocontrole. Possuía plena consciência do cômico que era ser linda e atraente aos olhos de terceiros. Havia aprendido a admiti‐lo, e o usava como se fosse um prêmio que havia ganhado, tudo o qual a fazia “não‐igual” a todos e a tudo.
Zuleica havia aprendido a arte do ventriloquismo, levando‐o a níveis excelsos, e sustentava que as palavras enunciadas pelo movimento dos lábios se tornavam mais confusas do que na realidade eram. A mim me encantava o modo em que Zuleica como ventríloqua fazia falar as paredes, as mesas, os pratos ou qualquer objeto que tivesse diante de si, e eu havia pego o costume de segui‐la pela casa. Mais que caminhar Zuleica parecia flutuar sem tocar o solo e sem mover o ar, e quando perguntei às outras feiticeiras se isto representava uma ilusão, me responderam que era porque Zuleica detestava deixar suas pegadas no chão.”

As Ensonhadoras e Espreitadoras

“Depois de conhecer e lidar com todas, as mulheres me explicaram a diferença entre ensonhadoras e espreitadoras. Chamavam a esta diferença “os dois planetas”.
Florinda, Carmela, Zoila e Delia eram espreitadoras: seres fortes dotados de grande energia física; agressivas, trabalhadoras incansáveis, e especialistas nesse extravagante estado de consciência que chamavam ensonhar desperto.

O outro planeta, as ensonhadoras, era composto pelas outras quatro mulheres:
Zuleica, Nélida, Hermelinda e Clara. Sua qualidade era mais etérea, não por ser menos forte ou enérgica, mas simplesmente porque sua energia era menos aparente.
Projetavam uma imagem de não ser deste mundo, ainda quando ocupadas com tarefas mundanas, e eram especialistas em outro estado especial de consciência, que chamavam “ensonhar em mundos outros que este mundo”. Me informaram que este era o estado de consciência mais complexo que uma mulher podia alcançar.
Quando todas elas trabalhavam juntas, as espreitadoras representavam uma cortiça exterior, dura e protetora, que ocultava um núcleo profundo: as ensonhadoras.

Elas eram a matriz suave que acolchoava a dura cortiça exterior.
Durante esses dias na casa das feiticeiras elas cuidaram de mim como se eu fosse algo precioso. Fui adulada e mimada, cozinharam para mim seus pratos favoritos, e me fizeram a roupa mais elegante que jamais tive. Me atordoaram com presentes, coisas bobas e jóias preciosas que guardaram, segundo disseram, para o dia do meu despertar.

Marte e Teresa

Havia outras duas mulheres no mundo dos feiticeiros, ambas espreitadoras, ambas gordas, e de nome Marta e Teresa. As duas eram bonitas e possuíam fabulosos apetites. No armário tinham escondido um sortido de biscoitos, chocolates e doces, muito convencidas de que somente elas conheciam sua localização, e me agradou e alegrou sobremaneira que desde a primeira hora me fizeram partícipe deste tesouro, habilitando‐me para fazer uso dele ao meu prazer, o qual, é claro, não deixei de fazer.
Das duas, Marta era a maior, uma exótica mistura de índia e alemã de vinte e tantos anos. Sua tez, se bem não de todo branca, era pálida; seu magnífico cabelo negro era suave e ondulado, e emoldurava um rosto cheio com maçãs do rosto altas.
Os olhos amendoados eram de um verde azulado, e suas pequenas e delicadas orelhas pareciam, por ser de um rosado quase transparente, as de um gato. Marta era muito dada a emitir longos e tristes suspiros, segundo ela devido a sua origem alemã, e a melancólicos silêncios, herança de sua alma indígena. Há pouco tempo havia começado a tomar lições de violino, e praticava a qualquer hora do dia, mas longe de
criticá‐la ou irritarem‐se com ela, a reação unânime era que Marta tinha um fabuloso ouvido musical.

Teresa media apenas um metro e cinquenta, mas sua robustez a fazia parecer mais alta. Mais que mexicana, parecia uma índia da Índia. Sua pele perfeita era de uma cremosa cor cobre claro, seus olhos puxados, escuros e líquidos, tinham por complemento cílios enrolados de tal peso que mantinham baixas as pálpebras, dando‐lhe uma expressão distante e sonhadora. Seu caráter doce e gentil nos convidava a protegê‐la.
Também em Teresa jazia um temperamento artístico. Pintava aquarelas ao cair da tarde. Diante de seu cavalete, com todos seus elementos prontos, sentava‐se durante horas no pátio à espera de que a luz e as sombras alcançassem seu ponto ideal, e então, com um controle e uma fluidez que pareciam ditados pela filosofia Zen, fazia entrar em ação seus pincéis, e dava vida às suas telas.”

(Sonhos Lúcidos, Florinda Donner Grau)

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