Relatos de Armando sobre a prática de Desandar os Passos

Lembro da ocasião em que Don Melchor, devido aos sinais que recebeu, convidou-me a uma viagem de regresso no tempo, para desenredar o que ele chamava de ‘meus medos e paranoias’. Havia dito: “As emoções não digeridas são o que evitam que o guerreiro voe livre.”

Os bruxos chamam a esse trabalho de cura de “o processo de desandar os passos”. Trata-se de um tipo de recapitulação ativa, onde a pessoa regressa fisicamente aos lugares e momentos de sua vida passada, num intento de reparar danos e resgatar sua energia. Para alguns, como no meu caso, esse foi um árduo processo de auto-descobrimento, já que, enquanto alguém renega suas origens, fica preso como num eterno redemoinho de emoções não digeridas, torna-se um ingrato com os demais, com a vida e consigo mesmo, de modo que nunca chegará a parte alguma. Por isso é imprescindível para os guerreiros, em tom de urgência, resolver esse aspecto de suas vidas.

Para cumprir com a ordem de fazer minha viagem de retorno, comecei por investigar minhas origens. O desandar de meus passos levou-me a eventos ocorridos nos anos de minha infância, quando ainda vivia com minha família adotiva no outro lado da fronteira.

Lembrava-me vividamente de minha fuga, quanto tinha escassos dez anos de idade. A insuportável hostilidade da qual era vítima, enquanto vivia com meus pais adotivos, levou-me a fugir de casa. Um dia, simplesmente evaporei no ar, e parti com a ideia de nunca mais voltar. Isso é o que achava, mas como aprendi, é impossível fugir de si mesmo.

Recordo que, naquele tempo, vivíamos numa cidadezinha fronteiriça do Arizona. Meu padastro era um policial de imigração, que vivia bêbado a maior parte do tempo. Segundo me contaram, ele tinha me resgatado da morte certa. Dizem que ele me encontrou chorando, nos braços de minha mãe, que jazia morta. Contudo, durante uma de suas bebedeiras, confessou que ele mesmo é que tinha atirado nela. Era apenas mais um caso de uma índia imigrante, morta no deserto.

Tomou-me como seu filho, mas desde que tenho memória, tudo que recebi deles foram maus tratos. Me transformaram no escravo da casa. Meus meio-irmãos eram especialmente cruéis, me mantinham amarrado, as vezes por vários dias, sem nada para comer. Meu pai não só permitia, assim como os incentivava, e também me maltratava. Em vez de me proteger, ele se unia aos que abusavam de mim.

Todos essa fatos me causaram um grande trauma, que se traduzia em mim num caráter de temor e desconfiança, e ainda que negasse ou tentasse disfarçar, a dor estava sempre ali, pressionando- me, como se fosse uma programação negativa gravada em meu espírito. Certas atitudes repetitivas eram para mim como mandamentos gravados em pedra, interferindo em minha mente, em meus sentimentos, e por fim, com minhas decisões.

“Somos o que somos devido à soma dos eventos que formaram nossas vidas. Portanto, é obrigação do guerreiro agir como um carpinteiro da alma, tapando frestas, curando ressentimentos, emparelhando níveis, reparando feridas, para que assim possa, algum dia, encontrar a liberdade.”

Quando tive maturidade e sabedoria suficientes, em certo dia voltei a ver minha família adotiva. Meu pai já tinha morrido, mas minha mãe ainda estava viva, e estava internada num asilo para idosos. A princípio não me reconheceu, mas quando lhe disse que era seu filho, que há anos tinha fugido de casa, lembrou-se de imediato. Chorando, ela me revelou que eu era o único de seus filhos que já tinha ido visitá-la. Pediu-me perdão, de como tinham me tratado, e me contou que um de meus irmãos tinha morrido, deram-lhe um tiro numa briga de bar, e que o outro estava na cadeia. Confessou que meu pai tinha morrido com remorsos, pelos maus tratos que me deram.

Senti a dor deles. De súbito, todo meu rancor se desvaneceu.

Nesse momento eu me libertei. Disse que os amava, e que estava agradecido porque eles me deram a oportunidade de viver neste mundo maravilhoso. Se não fosse meu pai me resgatar, por certo teria morrido junto à minha mãe naquele deserto.

Para sempre estarei grato à aqueles homens poderosos que, seguindo os sinais, ajudaram-me em meu caminho. Mas, acima de tudo, agradeço à oportunidade única de, algum dia, poder voar livre.

(Armando Torres, O Segredo da Serpente Emplumada)

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