Nas questões anteriores deste diário, a primeira premissa do caminho do guerreiro foi afirmada como: nós somos percebedores. “Percebedores” foi utilizado como substituto de “perceptor”. Não foi um erro, mas um desejo de estender o uso do termo “perceptor” da língua espanhola, que é muito ativo, a fim de conotar, em inglês, a urgência de ser um percebedor. Neste diário de hermenêutica aplicada, o problema de acentuar o significado de um termo apoiado por um cognato estrangeiro surgirá com muita frequência; às vezes, mesmo a ponto de forçar a criação de um novo termo; não como um espetáculo de esnobismo, mas devido à inerente necessidade de descrever algumas sensações, experiências ou percepções que nunca foram descritas antes ou, caso tenham sido, sua descrição fugiu ao nosso conhecimento. A implicação é que nosso conhecimento, independentemente do quão adequado pareça, é limitado.
A segunda premissa do caminho do guerreiro é chamada: NÓS SOMOS AQUILO QUE É A NOSSA CONCEPÇÃO. Esta é uma das mais difíceis premissas do caminho do guerreiro; não tanto em função de sua complexidade ou raridade, mas em virtude de ser praticamente impossível para qualquer um de nós admitir certas condições relativas a nós mesmos, condições das quais os feiticeiros estão cientes há mais de um milênio.
A primeira vez que Don Juan começou a explicar esta premissa, pensei que ele estava brincando ou que estava apenas tentando me chocar. Naquele tempo, ele estava me provocando sobre minha preocupação em achar amor na vida. Ele me perguntou uma vez quais eram meus objetivos na vida. Até então, eu não tinha conseguido encontrar nenhuma resposta inteligível. Respondi a ele, em tom de brincadeira, que eu queria achar o amor.
“A busca do amor, para as pessoas que criaram você, significava sexo”, Don Juan me disse naquela ocasião. “Por que você não trata a coisa como ela realmente é? Você está buscando satisfação sexual, não é verdade?”
Eu neguei, é claro. Mas a questão permaneceu com Don Juan como uma fonte de provocação. Toda vez que eu o via, ele encontrava ou construía um contexto particular a fim de me questionar sobre minha busca pelo amor, quer dizer, pela satisfação sexual.
A primeira vez que ele discutiu a segunda premissa do caminho do guerreiro, ele começou me provocando, porém, rapidamente, tornou-se muito sério.
“Aconselho você a mudar sua postura”, ele disse, “e a se abster totalmente de prosseguir com sua busca. Isso não o conduzirá a lugar nenhum, na melhor das hipóteses; na pior, isso o conduzirá à sua ruína.”
“Mas por que, Don Juan, por que eu devo desistir do sexo?”, perguntei em tom queixoso.
“Porque você é fruto de sexo aborrecido“, ele disse.
“O que é isso, Don Juan? O que você quer dizer com sexo aborrecido?”
“Uma das coisas mais sérias que os guerreiros fazem”, Don Juan explicou, “é pesquisar, confirmar e perceber a natureza de sua origem. Os guerreiros devem saber, tão precisamente quanto possível, se seus pais estavam sexualmente excitados quando os conceberam ou se estavam meramente cumprindo uma função conjugal. A atividade sexual civilizada é muito monótona para os participantes. Os feiticeiros acreditam, sem resquício de dúvida, que crianças concebidas nos costumes modernos são produtos de uma muito aborrecida… relação sexual. Não faço ideia de outra forma de como poderia chamar isso. Se eu usasse outra palavra, seria um eufemismo, e o termo perderia seu impacto.”
Após ouvir isso incessantemente, comecei a ponderar seriamente sobre o que ele estava querendo dizer. Eu pensei que o tinha compreendido. A dúvida me incomodava toda vez que eu me encontrava fazendo a mesma pergunta: “O que é um sexo aborrecido, Don Juan?”. Imaginava que, inconscientemente, eu queria que ele repetisse o que já tinha dito dezenas de vezes.
“Não veja com má vontade minha insistência”, Don Juan costumava me dizer toda vez. “Levará anos de luta antes que você admita que é fruto de sexo aborrecido. Então, vou repetir novamente: se não há excitação no momento da concepção, a criança que nasce de tal união será intrinsecamente, dizem os feiticeiros, da maneira como foi concebida. Visto que não há excitação entre os amantes, mas talvez meramente desejo mental, a criança deve arcar com as consequências deste ato. Os feiticeiros asseveram que tais crianças são carentes, fracas, instáveis e dependentes. Essas crianças, dizem os feiticeiros, são as que jamais saem de casa; elas permanecem imóveis na vida. A vantagem de tais seres é que eles são extremamente consistentes em meio à sua fraqueza. Essas crianças poderiam fazer o mesmo trabalho por toda a sua vida sem jamais sentir a necessidade de mudança. Caso aconteça de terem um bom exemplo enquanto crianças, elas crescem para ser muito eficientes, mas se falham em ter uma boa referência, não haverá fim para sua agonia, agitação e instabilidade.”
“Os feiticeiros dizem com grande tristeza que uma enorme massa da humanidade foi concebida desta maneira. Este é o motivo pelo qual ouvimos incessantemente sobre a urgência de encontrar alguma coisa que não temos. Nós buscamos, durante toda a duração de nossas vidas, de acordo com os feiticeiros, por aquela excitação original da qual fomos privados. É por isso que digo que você é fruto de sexo aborrecido. Eu vejo angústia e descontentamento escritos em seu corpo inteiro. Mas não se sinta mal. Eu também sou fruto de sexo aborrecido. Há muito poucas pessoas, até onde conheço, que não são assim.”
“O que isso significa para mim, Don Juan?”, perguntei a ele uma vez, verdadeiramente preocupado. De alguma forma, Don Juan mexeu com minha essência interior com cada palavra que disse. Eu era exatamente o que ele tinha descrito como um fruto de sexo aborrecido criado em um padrão ruim. Finalmente, um dia, tudo se reduziu a uma afirmação e questão crucial.
“Admito que sou fruto de sexo aborrecido. O que posso fazer?”, disse.
Don Juan sorriu efervescentemente, e lágrimas surgiram em seus olhos. “Eu sei, eu sei”, ele disse, batendo em minhas costas, tentando me confortar, suponho. “Para começar, não chame a si mesmo de sexo aborrecido.”
Ele me olhou com tanta seriedade e com uma expressão tão preocupada que eu comecei a tomar notas.
“Escreva tudo”, ele disse encorajadoramente. “O primeiro passo positivo é usar apenas as iniciais: C.A.”
Escrevi isso antes de perceber a piada. Parei e olhei para ele. Ele estava prestes a mostrar seu sorriso de canto. Em espanhol, sexo aborrecido é “cojida aburrida”. C.A., da mesma maneira que as iniciais do meu nome, Carlos Aranha.
Quando seu sorriso desapareceu, Don Juan descreveu seriamente um plano de ação para compensar as condições negativas de minha origem. Ele riu alvoroçadamente quando me descreveu não apenas como na média do C.A., mas como aquele que tinha uma carga extra de nervosismo.
“No caminho do guerreiro”, disse, “nada é final. Nada é para sempre. Se seus pais não o fizeram como deveriam, refaça a si mesmo.”
Ele explicou que a primeira manobra dos feiticeiros é tornarem-se avarentos por energia. Visto que alguém resultado de sexo aborrecido quase não possui energia, é inútil desperdiçar o pouco que se possui em padrões que não são adequados para a quantia de energia disponível. Don Juan recomendou que eu me abstivesse de me engajar em padrões de comportamento que demandassem a energia que eu não tinha. A abstinência foi a resposta, não porque era moralmente correta ou desejável, mas porque era, energeticamente, o único caminho para mim no qual poderia armazenar energia suficiente para estar em pé de igualdade com aqueles que foram concebidos sob condições de enorme excitação sexual.
Os padrões de comportamento dos quais ele falava incluíam tudo o que eu fazia, da forma como eu amarrava meus sapatos e comia, até os modos pelos quais eu me preocupava com minha apresentação pessoal, ou a maneira com que eu realizava minhas atividades diárias, especialmente quando se referia ao namoro. Don Juan insistiu para que eu me abstivesse do intercurso sexual porque eu não tinha energia para isso.
“O único resultado em sua atividade sexual”, ele afirmou, “é conduzi-lo a um estado de profunda desidratação. Você tem círculos sob seus olhos, seu cabelo está caindo; você possui marcas estranhas em suas unhas, seus dentes são amarelos; e seus olhos estão lacrimejando o tempo todo. As relações com mulheres lhe causam tanto nervosismo que você devora sua comida sem mastigá-la, então você está sempre constipado.”
Don Juan divertiu-se imensamente ao me dizer tudo isso, o que se somou imensamente à minha humilhação. Sua última observação foi, entretanto, como um ato de lançar um salva-vidas para mim.
“Os feiticeiros dizem”, continuou, “que é possível converter o sexo aborrecido em alguma coisa inconcebível. Tudo é uma questão de intencionar isso. Eu digo, intencionar o inconcebível. Para fazer isso, para intencionar o inconcebível, devemos usar qualquer coisa que esteja disponível, qualquer coisa, afinal.”
“O que é ‘qualquer coisa’, Don Juan?”, perguntei, claramente tocado.
“‘Qualquer coisa’ é qualquer coisa. Uma sensação, uma memória, um desejo, um impulso; talvez medo, temeridade, esperança; quem sabe, curiosidade.”
Não desisti de entender esta última parte. Porém, compreendi o suficiente para começar minha própria batalha a fim de me livrar da base dos conceitos civilizados. Um tempo depois, a “batedora azul” escreveu um poema que explicou tudo isso para mim.
O conceito de sexo aborrecido pela Batedora Azul.
Ela foi feita em um trailer no Arizona, depois de uma noite de jogos de pôquer e cervejas com os amigos.
Seus pés ficaram presos nos laços esfarrapados de sua camisola. Ela cheirava como uma mistura de fumaça de cigarro e spray para cabelo.
Ele estava pensando no resultado do boliche quando percebeu que estava excitado. Ela se perguntou como esta vida poderia, porventura, durar para sempre.
Ela queria ir ao banheiro quando se encontrou presa. Ele sufocou um arroto enquanto ela estava engravidando, mas, felizmente para ela, os dois estavam no deserto, e, naquele momento, um coiote uivou, mandando um sopro de desejo através do útero da mulher.
Aquele arrepio foi tudo que ela trouxe a este mundo.
(Carlos Castaneda, Um Diário de Hermenêutica Aplicada)
Tradução: Felipe Silva
Revisão: J Christopher