“Havia algo quieto ainda que estranhamente perturbador na sua voz quando ela disse que ela tinha notado que sempre que eu tive de falar com a amiga da minha avó, eu parecia ausente como se estivesse adormecida.

-Ausente é um eufemismo – disse eu. – Você não tem ideia do que eu passei; o que tive de fazer pra convencer aquela velha senhora de que eu não era o diabo encarnado.

Delia parecia não ter me escutado.

– Eu soube instantaneamente que você tinha uma grande facilidade para ensonhar – , e prosseguiu: – Então eu segui você pela casa e vi você em ação. Você não estava totalmente consciente do que estava fazendo ou dizendo. E ainda assim estava se saindo bem; falando e rindo e mentindo descaradamente para que gostassem de você.

– Está me chamando de mentirosa? – Perguntei de brincadeira mas sem conseguir esconder meu incômodo.

Senti um impulso de ficar irritada. Encarei a jarra de água sobre a mesa até o sentimento ameaçador desaparecer.

– Eu não ousaria te chamar de mentirosa – , disse Delia com um tanto de pompa. – Diria que você é uma ensonhadora.

Havia uma solenidade grave no tom de voz dela, mas seus olhos brilhavam de gozo e malícia enquanto disse:

– Os brujos que me criaram me disseram que não importa o que se diz, desde que se tenha o poder de dizê-lo.

Sua voz transmitia tamanho entusiasmo e aprovação que eu tive certeza que havia alguém atrás das portas nos escutando.

-E a maneira de obter esse poder – , disse ela, – é ensonhando. Você não sabe disso porque o faz naturalmente, mas quando está num aperto, sua mente instantaneamente entra no ensonhar.

Para mudar de assunto, perguntei:

– Você foi criada por brujos, Delia?

– Claro que fui – declarou, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

– Seus pais eram brujos?

– Não, não – respondeu com um riso contido – Os brujos me acharam um dia e me criaram desde então.

– Quantos anos você tinha? Era criança?

Delia riu como se minha pergunta tivesse atingido o auge do humor.

– Não, eu não era uma criança – disse. – Tinha talvez a sua idade quando me encontraram, e começaram a me criar.

– O que quer dizer com ‘começaram a te criar’?

Delia me olhou fixamente sem focalizar seus olhos em mim. Por um momento, achei que não tivesse me escutado, ou, que se tinha, que não iria responder. Repeti minha pergunta. Ela encolheu os ombros e sorriu.

– Eles me criaram assim como se cria uma criança – disse finalmente. – Não importa quantos anos se tenha: no mundo deles, você é uma criança.

Repentinamente com medo de que pudéssemos ser escutadas, olhei de relance por sobre meu ombro e sussurei:

– Quem são esses brujos, Delia?

– Essa é uma pergunta muito difícil – cochichou. – Por enquanto, não posso nem sequer começar a respondê-la. Tudo que posso dizer a respeito é que foram eles e elas que me disseram que ninguém deveria mentir para ser acreditado.

– Por que se deveria mentir então? – Perguntei.

– Pelo puro prazer de fazê-lo – Delia replicou prontamente.

Ela então se levantou de sua cadeira e andou em direção a porta que conduzia ao pátio. Antes de sair, ela se virou e com um sorriso no rosto perguntou:

– Você conhece aquele ditado: ‘Se você não está mentindo para ser acreditada, pode dizer o que quiser, independente do que pensem de você’?

– Nunca ouvi esse ditado antes.

Suspeitei que ela o tivesse inventado: era a cara dela.

– Além do mais, não entendo o que está querendo dizer.

– Tenho certeza que entende – disse, me olhando de lado através das mechas do seu cabelo negro.

Com um gesto de queixo, fez sinal que a seguisse.

– Vamos ver Esperanza agora.”

(Sonhos Lúcidos, Florinda Donner)

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