Uma das coisas, entre tantas outras, que Castaneda descreveu foi, não tanto a capacidade de estar em dois lugares, evento esse já descrito em outras publicações de autores em épocas diferentes, mas também se perceber a si mesmo ao mesmo tempo em dois lugares e envolto em movimentação de massas de ar., bem como se deslocar para outro local distante com sua totalidade, através do que era chamado Viagem ao Mar Escuro da Consciência, na obra O Lado Ativo do Infinito. Para tanto o princípio é ser levado a um estado de consciência intensificada. O nome do fenômeno variava conforme a ênfase, podia ser duplo sonhador se enfatizasse a semelhança com o corpo tonal, podia ser apenas corpo sonhador se enfatizasse qualquer forma que tomasse, de acordo com o estado da percepção. Outra práxis tomada naquela ocasião foi a viagem do duplo sonhador fixando as emanações do casulo numa nova posição de ensonho, um estágio fundamental pra superar a radicalidade material do mundo e de nós mesmos, passar do estágio da mente para a práxis.

“Através dos anos, dom Juan e os membros de seu grupo haviam tentado tornar-me consciente de que podemos estar em dois lugares ao mesmo tempo, que podemos experimentar uma espécie de dualismo perceptivo.
Enquanto dom Juan explicava, comecei a me lembrar de uma coisa tão profundamente esquecida que, de início, era como se eu tivesse apenas ouvido falar a respeito. Então, passo a passo, percebi que eu mesmo havia vivido esta experiência.

Estivera em dois lugares ao mesmo tempo. Aconteceu certa noite nas montanhas do norte do México. Colhera plantas com dom Juan durante o dia. Havíamos parado por causa da noite e já quase adormecera de fadiga quando, subitamente, houve uma lufada de vento e dom Genaro saltou da escuridão exatamente diante de mim, me assustando.

Meu primeiro pensamento foi de suspeita. Acreditei que dom Genaro estivera escondido nos arbustos durante o dia, esperando escurecer para fazer sua aterrorizante aparição. Quando olhei para ele pavoneando-se, percebi que havia algo de realmente estranho nele naquela noite. Alguma coisa palpável, real e, ainda assim, algo que não conseguia determinar exatamente.

Ele brincou comigo e me fez de bobo, realizando coisas que desafiavam minha razão. Dom Juan ria como um idiota de meu espanto. Quando achou que era o momento, fez-me passar para a consciência intensificada e, por um instante, fui capaz de ver dom Juan e dom Genaro como duas bolhas de luz Genaro não era o dom Genaro em carne e osso que eu conhecia em meu estado de consciencia normal, mas seu corpo sonhador. Eu sabia porque o vi como uma bola de fogo acima do solo. não estava enraizado como dom Juan. Era como se Genaro, a bolha de luz, estivesse no momento da decolagem, já suspenso no ar, quase um metro acima do solo,pronto pra partir zunindo.

Outra coisa que me acontecera naquela noite e que subitamente tornou-se clara para mim enquanto relembrava foi que soube automaticamente que tinha de mover meu olhos para deslocar meu ponto de aglutinação. Eu podia, com minha intenção, alinhar as emanações que me faziam ver Genaro como uma bolha de luz, ou podia alinhar as emanações que me faziam vê-lo esquisito, desconhecido, estranho.

Quando vi Genaro esquisito, seus olhos tinham um clarão malévolo, como olhos de uma fera na escuridão. Mas eram olhos apesar de tudo. não os via como pontos de luz âmbar.

Naquela noite, dom Juan disse que Genaro iria ajudar meu ponto de aglutinação a deslocar-se profundamente, e que eu devia imitá-lo e seguir tudo o que ele fizesse. Genaro jogou o traseiro para trás e então lançou a pélvis para frente com muita força. Achei que era um gesto obsceno. Ele o repetiu muitas e muitas vezes, movendo-se como se estivesse dançando.

Dom Juan cutucou-me o braço, incentivando-me a imitar Genaro, e assim o fiz. Formamos uma espécie de ciranda, fazendo aquele movimento grotesco. Depois de algum tempo, tive a sensação de que meu corpo executava o movimento por si mesmo, sem o que parecia ser o eu real. A separação entre meu corpo e o eu real ficou ainda mais pronunciada, e então, em dado momento, estava olhando para uma cena ridícula onde dois homens faziam gestos lascivos um para o outro.

Observei fascinado e percebi que eu era um dos homens. no momento em que fiquei consciente daquilo senti algo empurrando-me e encontrei-me jogando a pélvis para trás e para diante, em uníssono com Genaro. Quase imediatamente, percebi que outro homem parado ao lado de dom Juan nos olhava. O vento soprava ao seu redor e pude ver seu cabelo sendo agitado. Estava nu e parecia embaraçado. O vendo concentrava-se ao seu redor como se o protegesse, ou talvez o oposto, como se tentasse soprá-lo para longe.

Demorei pra perceber que era eu o outro homem. Quando isso ocorreu, tive o maior choque de minha vida uma força física imponderável dividiu-me como se eu fosse feito de fibras, e encontrei-me novamente olhando pra o homem que era eu dançando com Genaro, olhando pasmado para mim enquanto eu olhava. E ao mesmo tempo estava olhando pra um homem num que era eu olhando pasmado para mim enquanto eu fazia gestos lascivos com Genaro. O choque foi tão grande que interrompeu o ritmo de meus movimentos e caí.

Quando dei por mim, dom Juan me ajudava a pôr-me de pé. Genaro e o outro eu, o que estava nu, haviam desaparecido.


Na sequência do mesmo capítulo, Carlito relata que em outro momento, estava sentado num banco de praça com dom Juan e dom Genaro, e que de modo surpreendente começou a ver dom Genaro também do outro lado da praça acenando-lhe. Entrou num estado de transe sem poder falar, e os insistentes acenos do Genaro do outro lado para que se juntasse a ele fizeram com que se sentisse dividido e suas fibras também estivesse ao lado desse duplo Genaro, ao mesmo tempo que sentia dom Genaro e dom Juan lhe escudando os lados no banco da praça. Na sequência, como estivesse em estado alterado, na consciência intensificada, dom Juan lhe propôs que se deixasse dormir e sonhar, ao que se viu no interior de uma casa ao lado de uma moça que combinava simpatia e magnetismo, um sonho tão intenso que se esquecera de dom Juan no banco da praça. Mas em certo momento a voz de dom Juan ao seu lado lhe fez recordar onde estava, de modo que sentia-se em dois lugares ao mesmo tempo. Dom Juan disse que se deixasse levar pelos sentimentos de calor e acolhimento pela moça e acordasse definitivamente naquela posição de sonho.

” Uma sensação de transbordante excitação percorreu-me o corpo. Senti como se a excitação estivesse realmente me desintegrando. não me importava com o que acontecesse. Prazerosamente, saltei para uma escuridão mais negra do que poderia exprimir com palavras, e encontrei-me então na casa da jovem . Estava no sofa com ela.

Após um instante de puro pânico animal, percebi que, de alguma maneira, não me sentia completo. Algo faltava em mim. no entanto, não achei a situação ameaçadora. Minha mente foi atravessada pelo pensamento de que estava ensonhando e logo iria acordar no banco do parque em Oaxaca com dom Juan,, onde realmente era meu lugar.

A jovem ajudou-me a levantar e levou-me para um banheiro em que havia uma grande banheira cheia de água. Percebi então que estava completamente nu. Suavemente, ela me fez entrar na banheira e segurou minha cabeça enquanto eu me deixava flutuar.

Depois de algum tempo, ajudou-me a sair da banheira. Sentia-me fraco e inconsistente. Deitei-me no sofá da sala e ela aproximou-se de mim. podia ouvir o bater de seu coração e a pressão do sangue correndo através do seu corpo. Seus olhos eram como duas fontes radiantes de algo que não era luz ou calor, mas que curiosamente situava-se entre as duas coisas. Soube que estava vendo a força da vida projetando-se para fora de seu corpo através dos olhos. todo seu corpo era como uma fornalha viva brilhante. ‘


Dom Juan acaba esclarecendo que o deslocamento do ponto de encaixe da percepção além da linha média do casulo do homem faz com que o mundo inteiro que conhecemos desapareça instantaneamente de nossas vistas, como se tivesse sido apagado —- pois a estabilidade e substancialidade que parece pertencer ao nosso mundo perceptível é apenas a força de alinhamento. Certas emanações são rotineiramente alinhadas devido á fixação do ponto de encaixe em uma posição específica; e nosso mundo é apenas isso.

” Se a posição de sonho é suficientemente forte pode arrastar as emanações do casulo, seja por emoção atrativa forte, ou intento inflexível. O ponto de aglutinação fica poderosamente fixado á posição de sonho, o tempo suficiente para arrastar para ali todas as emanações que estão no interior do casulo. Foi desse modo que os antigos feiticeiros desapareceram desse mundo, porque acordaram em uma posição de ensonho além dos limites do conhecido. Já sua posição de ensonho naquele dia estava neste mundo, mas a uma boa distância da cidade de Oaxaca.

Compartilhado por Dinarte Medrano
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Trechos retirados do livro O Fogo Interior, de Carlos Castañeda

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2 comentários sobre “A viagem do corpo sonhador e a posição de ensonho

  1. Avatar Anderson Barreto disse:

    a viajem do corpo sonhador é muito perigosa, Urly Geller, teve este tipo de experiencia,como relatado no livro de Carlos Castaneda Carol Tiggs estava la para dar suporte.Vamos imaginar vc acordar a 3000 km de distancia pelado sem dinheiro e sem nenhum conhecido num pais ou mundo alternativo ;que merda… eu não sei aonde estes antigos ou modernos pretendem ir,,. So quero descançar em paz, Nem todos podemos ser generais nem todos podemos ser feiticeiros…

    1. Avatar Nagualismo disse:

      Anderson, só existe paz pra Totalidade. Há um caminho simples e natural para integrar a totalidade de si, e há a possibilidade de se aventurar a explorar a nossa natureza como perceptores, quando a recuperamos. Isso é optativo. A paz não reside no reino do tonal e da forma humana, e nem sequer no reino da 2a atenção e dos sonhos. Enquanto alguém deseja paz mas se agarra a esses dois reinos, no máximo terá vislumbres passageiros de paz. A paz permanente é um subproduto do despertar da terceira atenção. Luno.

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