“—Esperanza lhe disse que você nos havia sido assinalada — prosseguiu. —E agora isso nos impulsiona, como a você lhe impulsiona o medo.

—A mim não me impulsiona nada nem ninguém — gritei, esquecendo que ainda não me havia revelado o que desejavam de mim. Em aparência indiferente ante minha raiva, disse que Esperanza havia sido muito clara ao explicar-me que dali em diante eles estavam comprometidos em me criar.

—Me criar!? — gritei. —Vocês estão loucos. Já recebi toda a criação que necessito!

Ignorando meu estouro se dedicou a explicar que o compromisso deles era total, e o fato de que eu o entendesse ou não, não lhes importava. Fiquei olhando-o, incapaz de ocultar meu medo. Jamais havia escutado a alguém expressar-se com tanta indiferença e ao mesmo tempo com interesse. Num esforço por ocultar meu alarme procurei injetar em minha voz um valor que estava longe de sentir, e perguntei:

—O que é que querem insinuar quando falam em criar-me?

—Exatamente o que ouviu — respondeu. —Estamos comprometidos a guiar-te.

—Mas, por quê? — estava nervosa e curiosa ao mesmo tempo. —Você não vê que não preciso de direção, nem quero que…?

O riso de Mariano Aureliano afogou minhas palavras.

—Não há dúvida alguma de que necessita direção. Esperanza já te fez ver que sua vida carece de significado — e antecipando minha iminente pergunta me pediu silêncio. —E no tocante a por quê você e não outra pessoa, ela lhe explicou que deixamos ao espírito a escolha de quem devemos dirigir, e o espírito assinalou você.

—Um momento, senhor Aureliano — protestei —, não quero ser grosseira nem ingrata, mas você precisa entender que não busco direção. A simples idéia me aborrece. Você entende? Fui suficientemente clara?

—Sim, e compreendo o que quer que eu entenda — e ao dizer isto deu um passo para trás para afastar-se de meu dedo em riste —, mas precisamente por não desejar nada, você se converte na candidata ideal.

—Candidata? — gritei, farta de sua insistência. Olhei ao redor, perguntando-me se aqueles que entravam e saíam da cafeteria poderiam ter me escutado, e continuei gritando:

—O que é isto? Você e seus companheiros são um bando de loucos! Deixem- me em paz, me ouviu? Não preciso de vocês nem de ninguém.

Para surpresa e mórbida alegria de minha parte, Mariano Aureliano terminou por irritar-se e se pôs a criticar-me tal como faziam meus pais e meus irmãos. Com voz controlada, que não transcendia ao cenário de nossa discussão, me insultou, tratando- me de estúpida e de malcriada. Depois, como se o insultar-me lhe desse ímpeto, disse algo imperdoável. Gritou que minha única fortuna era a de ter nascido loira e de olhos azuis, numa terra onde esses atributos eram reverenciados.

—Jamais teve que lutar por nada — assegurou. —A mentalidade colonial dos mestiços de seu país fez que te olhassem como se merecesse tratamento especial. Um privilégio baseado na posse de uma cabeleira loira e olhos azuis é o privilégio mais tonto que pode existir.

Eu estava passada, pois jamais fui dos que recebem insultos sem reagir. Os anos de treinamento familiar para essas batalhas gritadas que mantínhamos, e as extremamente descritivas vulgaridades aprendidas (e nunca esquecidas) nas ruas de Caracas quando era menina, essa tarde me foram de suma utilidade. Disse coisas a Mariano Aureliano que me envergonham até o dia de hoje.

Tal era meu estado de nervos que não percebi que o índio corpulento condutor da camionete se havia juntado a nós, e apenas o soube ao escutar sua forte risada. Ele e Mariano Aureliano praticamente estavam no chão, segurando as barrigas e gritando alvoroçados.

—O que tem de engraçado nisto? — gritei ao índio corpulento, a quem também insultei.

—Que mulher tão boca-suja! — disse em perfeito inglês —, se eu fosse seu pai lhe lavava a boca com água e sabão.

—Quem te deu vela neste enterro, gordo de merda? — e cega de fúria, dei-lhe um chute no tornozelo.

A dor lhe fez soltar um grito, e me insultou. E eu estava a ponto de agarrar-lhe o braço e mordê-lo quando Mariano Aureliano me pegou por trás e me jogou no ar.

O tempo se deteve. Minha descida foi tão lenta, tão imperceptível, que me pareceu estar suspensa no ar indefinidamente. Não caí em terra com os ossos quebrados como esperava, e sim nos braços do índio corpulento. Não cambaleou ao receber-me, sustentando-me como a uma levíssima almofada. Consegui captar um malicioso reflexo em seus olhos, e tive a certeza de que me iria lançar para cima de novo, mas deve ter intuído meu temor, pois sorriu e, com suavidade, me depositou no chão. Esgotadas minhas forças e minha ira, me apoiei contra o carro e chorei.

Mariano Aureliano me rodeou com seus braços e acariciou minha cabeça e meu braço, tal como fazia meu pai quando eu era menina. Murmurando palavras tranquilizantes me assegurou não estar nem um pouco incomodado pelas barbaridades que lhe havia gritado. A culpa, e um sentimento de pena por mim mesma, aumentaram a intensidade de meu choro. Ante isto ele sacudiu a cabeça num gesto de resignação, ainda que seus olhos brilhassem de gozo. Depois, num esforço evidentemente destinado a fazer-me rir, confessou que, contudo, lhe custava acreditar que eu conhecesse um linguajar tão sujo, e menos ainda usá-lo.

—Bom — cochichou — suponho que a linguagem existe para ser usada, e o linguajar sujo para quando as circunstâncias o requerem.

Suas palavras não me causaram graça, e uma vez superado o ataque de auto- compaixão eu comecei, como era habitual em mim, a remoer sua afirmação de que a única coisa que eu possuía era o cabelo loiro e os olhos azuis. Devo ter revelado algo a Mariano Aureliano acerca de meus sentimentos, pois me assegurou haver dito isso somente para mortificar-me, e que não havia nada de certo nisso. Sabia que mentia, e por um momento me considerei duplamente insultada, e depois espantada, ao dar-me conta de que minhas defesas estavam destruídas. Estava de acordo com ele. Havia estado certo em tudo o que havia dito. Com um só golpe me havia desmascarado, perfurado minha couraça. Ninguém, nem sequer meu pior inimigo, já havia conseguido me aplicar um golpe tão demolidor, e no entanto, pensasse o que pensasse de Mariano Aureliano, sabia que não era meu inimigo. Essa descoberta me produziu vertigens, como se uma força invisível estivesse pressionando algo em meu interior a idéia de mim mesma. Algo que costumava fortificar-me agora me esgotava. Mariano Aureliano me pegou pelo braço e me conduziu até a cafeteria.

—Vamos fazer uma trégua — me sugeriu jovialmente. —Preciso que me faça um favor.

—Você não precisa nada mais do que pedir — respondi, e procurei imitar seu tom.

—Antes que você chegasse pedi um sanduíche na cafeteria, e praticamente se recusaram a me servir. Quando protestei o cozinheiro me dispensou. Isso acontece por eu ser índio — queixou-se abatido.

—Denuncie o cozinheiro para o gerente — sugeri indignada, meus próprios problemas misteriosamente esquecidos.

—Isso não me ajudaria em nada — confessou Mariano Aureliano, e me assegurou que a única maneira em que eu podia ajudá-lo era entrando na cafeteria para sentar-me no balcão, pedir um bom almoço, e deixar cair nele uma mosca morta.

—E tacar a culpa no cozinheiro? — conclui por ele. Tudo me parecia tão absurdo que acabei rindo, mas ao perceber que falava a sério, prometi fazer o que me pedia.

—Espere aqui — disse, e depois, junto com o índio corpulento (que ainda não me havia sido apresentado) se encaminharam até a camionete roxa, estacionada na rua, para regressar quase de imediato.

—A propósito — disse Mariano Aureliano —, este é John. É um índio Yuma do Arizona.

Estava por perguntar se John também era feiticeiro, mas Mariano Aureliano se adiantou a mim.

—É o membro mais jovem de nosso grupo.

Com um risinho nervoso estendi minha mão:

—Encantada em conhecer-lhe.

—Igualmente — retribuiu. Sua voz era profunda, ressonante, e seu aperto de mãos, cálido. —Espero que você e eu nunca nos agarremos a tapas.

Apesar de não ser muito alto exalava a vitalidade e a força de um gigante. Até seus grandes dentes brancos pareciam indestrutíveis. Com ânimo brincalhão inspecionou meus bíceps e opinou:

—Aposto que pode desmontar a um sujeito com um só soco bem dado.

Antes que pudesse desculpar-me por meus chutes e insultos, Mariano Aureliano pôs uma pequena caixa em minhas mãos.

—A mosca — explicou. —John sugeriu que use isto — e tirou uma peruca negra e enrolada de uma bolsa. —Não se preocupe, é nova em folha — disse, enquanto a acomodava em minha cabeça. Depois, afastando-se um pouco para inspecionar-me, disse que servia. —Não está mal. Não quero que te reconheçam — e se ocupou de ocultar minha longa cabeleira loira.

—Não há necessidade de disfarçar-me — protestei. —Posso assegurar-lhes que não conheço a ninguém em Tucson. —me observei no espelho retrovisor de meu carro. —Não posso entrar assim, pareço um poodle.

Mariano Aureliano me observava com um exasperante ar divertido, enquanto acomodava uns fios rebeldes.

—Não se esqueça que tem que se sentar no balcão e gritar como uma louca quando descobrir a mosca em sua comida.

—Por quê?

Olhou-me como se eu fosse uma retardada.

—Tem que chamar a atenção e humilhar ao cozinheiro.

A cafeteria estava repleta pelos clientes de primeira hora, mas não demorei em arranjar um lugar no balcão. Uma cansada mas bem disposta garçonete pegou meu pedido. Semi-oculto atrás da grade dos pedidos pude ver ao cozinheiro, mexicano ou norte-americano de origem mexicana, que desempenhava suas tarefas com tal bom ânimo que tive a certeza de que era inofensivo, incapaz de malícia alguma; mas ao pensar no velho índio que me aguardava na praça de estacionamento, não hesitei em esvaziar o conteúdo da caixa de fósforos sobre o hambúrguer perfeitamente assado que havia pedido, e o fiz com tal velocidade e dissimulação que nem sequer os homens sentados de cada lado notaram minha ação. Meu grito de asco foi autêntico, ao ver uma enorme barata morta em minha comida.

—O que foi, querida? — perguntou a garçonete.

—Como o cozinheiro espera que eu coma isto? — me queixei. Não foi necessário pretextar raiva. Estava indignada, não com o cozinheiro e sim com Mariano Aureliano. —Como pôde fazer isto comigo? — perguntei em voz alta.

—Só pode ser um horrível acidente — explicou a mulher aos dois curiosos clientes que me ladeavam, ao mesmo tempo em que mostrava o prato ao cozinheiro.

—Fascinante! — opinou o cozinheiro em voz alta, e coçando a testa inspecionou o prato. Não demonstrava preocupação alguma, e tive a vaga suspeita de que se ria de mim. —Esta barata ou caiu do teto ou… — e olhou minha cabeça como se fascinado — …de sua peruca.

Antes que eu pudesse demonstrar-lhe minha indignação e colocá-lo em seu lugar, me ofereceu a escolha de qualquer prato do menu.

—Por conta da casa — prometeu.

Pedi um bife e um caldo quente, o qual me foi trazido quase de imediato, e quando estava a ponto de colocar os temperos em minha salada, o qual sempre deixo para o final, descobri uma aranha de respeitável tamanho emergindo por debaixo da folha. Foi tal minha surpresa ante a evidente provocação que nem sequer pude gritar, e ao levantar os olhos vi ao cozinheiro atrás da treliça, acenando-me com a mão e com um amplo sorriso. Mariano Aureliano me aguardava, impaciente.

—O que aconteceu? — perguntou.

—Você e sua asquerosa barata! — disse incisiva. —Não aconteceu nada. O cozinheiro não se incomodou, e se divertiu muitíssimo, claro que às minhas custas. A única que se incomodou fui eu.

A pedido seu, dei a Mariano Aureliano um detalhado informe do acontecido. Quanto mais eu falava mais parecia divertir-se. Desconcertada por sua reação exigi:

—O que é tão engraçado para você?

Lutou por manter-se sério, mas seus lábios o traíram, e o riso inicial se converteu numa explosão de boas gargalhadas.

—Não pode se levar tão a sério — me repreendeu. —É uma excelente ensonhadora, mas não é atriz.

—Não estou atuando agora — retruquei defensivamente em voz chorosa.

—Quero dizer que contava com sua habilidade para ser convincente — esclareceu. —Tinha que fazer o cozinheiro acreditar em algo que não era certo. Pensei que poderia fazê-lo.

—Como você se atreve a me criticar? — gritei. —Faço o papel de tonta em seu favor, e tudo o que se lhe ocorre dizer é que não sei atuar! — tirei a peruca e a joguei longe. —Por certo que agora estou com piolhos. Ignorando meu rompante Mariano Aureliano observou que Florinda já lhe havia antecipado que eu era incapaz de fingir.

—Tínhamos que nos assegurar para colocá-la na repartição apropriada — acrescentou. — Os feiticeiros são ou ensonhadores ou espreitadores.

—Do que está falando? Que bobagem é esta de ensonhadores e espreitadores?

—Os ensonhadores se ocupam de ensonhos — explicou. —Obtêm seu poder e sua sabedoria dos ensonhos. Os espreitadores, por sua parte, tratam com gente, com o mundo cotidiano, e obtêm sua sabedoria e seu poder através do comércio com seus semelhantes.

—Evidentemente você não me conhece — disse de maneira depreciativa. —Eu sei lidar muito bem com as pessoas.

—Isso não é verdade — me contradisse. —Você mesma já disse que não sabia conversar. É uma boa mentirosa, mas mente só para conseguir o que deseja. Suas mentiras são demasiado específicas, por demais pessoais. E sabe por quê? — fez uma pausa, como para dar-me tempo de responder, mas antes que eu pudesse pensar em algo, continuou: —Porque para você as coisas são brancas ou pretas, sem meios tons, e não falo em termos de moral mas sim em termos de conveniência; sua conveniência, é claro. Uma verdadeira autoritária. — Mariano e John trocaram olhares, depois ambos endireitaram seus ombros, fizeram soar os saltos de seus sapatos, e fizeram algo para mim imperdoável. Estiraram os braços numa saudação fascista e gritaram:

—Mein Führer!

Quanto mais riram mais aumentava minha fúria. Senti o sangue zunindo em meus ouvidos, sufocando meu rosto, e desta vez não fiz nada para acalmar-me além de chutar meu carro e dar murros na capota. Em vez de consolar-me, tal qual teriam feito meus pais ou meus amigos, os dois homens se dedicaram a rir como se eu lhes estivesse proporcionando o espetáculo mais divertido imaginável. Sua indiferença, sua total falta de preocupação comigo era tão chocante, que minha ira diminuía lentamente por si mesma. Nunca havia sido ignorada a tal ponto. Senti-me perdida, sem capacidade de manobra. Nunca soube, até esse dia, que se as testemunhas de meus ataques de raiva se mostravam indiferentes, eu não sabia que caminho tomar.

—Creio que agora está confundida. Não sabe o que fazer. — Mariano Aureliano disse a John, e o rodeou com seu braço e acrescentou em voz baixa mas o suficientemente alta como para que eu escutasse: —Agora vai começar a chorar, e quando o fizer, chorará até que a consolemos. Não há nada mais chato que uma putinha malcriada.

Isso foi o auge. Como um touro ferido, baixei a cabeça e investi contra Mariano Aureliano. Tanto lhe surpreendeu meu furioso e inesperado ataque que quase perdeu o equilíbrio, o qual me deu tempo suficiente para cravar os dentes na parte carnosa de sua barriga. Seu grito foi uma mistura de dor e riso. John me pegou pela cintura para separar-me, mas eu não afrouxei a mordida enquanto não cedeu minha prótese dental. Havia perdido dois de meus dentes superiores frontais aos treze anos, numa briga entre os estudantes venezuelanos e alemães da Escola Alemã de Caracas. Os dois homens riram aos gritos, John recostado sobre o porta-malas de meu Volkswagen, segurando a barriga e golpeando o carro.

—Tem um rombo entre os dentes como um jogador de futebol! — conseguiu articular entre alaridos.

Minha vergonha superou toda descrição. Tal era minha raiva que meus joelhos se afrouxaram. Caí ao chão como uma boneca de trapo e desmaiei. Quando recuperei os sentidos estava sentada dentro da camionete. Mariano Aureliano me pressionava as costas e, sorrindo, acariciava repetidas vezes minha cabeça. Depois me abraçou. Me surpreendeu minha ausência de emoção; não me sentia enraivecida nem envergonhada. Estava relaxada, em paz, dona de uma serenidade, de uma tranquilidade nunca experimentada anteriormente. Pela primeira vez em minha vida me dei conta de que jamais havia estado em paz comigo nem com os outros.

—Gostamos muito de você — disse Mariano Aureliano —, mas precisa se curar desses ataques de autoimportância. Se não o fizer eles te matarão. Desta vez foi culpa minha, e preciso pedir perdão por ela. Eu te provoquei deliberadamente.

Me encontrava por demais tranquila para responder. Desci da camionete para estirar braços e pernas. Sentia câimbras nas panturrilhas. Depois de um tempo lhes pedi desculpas a ambos, e lhes disse que meu caráter havia piorado desde que passei a tomar bebidas gasosas compulsivamente.

—Então deixe de fazê-lo — sugeriu Mariano Aureliano. Depois mudou por completo de assunto e seguiu como se nada houvesse acontecido. Disse estar muito contente por eu ter-me unido a eles.

—De verdade? — perguntei sem compreender. —Eu me uni a vocês?

—Assim é. Um dia tudo terá sentido para você — e me assinalou um bando de corvos que nos sobrevoavam. —Os corvos são um bom presságio. Olhe como são lindos. Como uma pintura no céu. Vê-los agora é uma promessa de que nós nos veremos de novo.

Fiquei olhando aos pássaros até que desaparecessem. Quando me voltei para olhar a Mariano Aureliano já não estava ali. A camionete se havia ido sem sequer um ruído.”

(Sonhos Lúcidos, Florinda Donner)

Posts Relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *