“- Diga-me agora, qual é a arte de espreitar? – perguntei.

– O Nagual era um espreitador – disse ela, e olhou para mim. – Você deve saber disso. Ele lhe ensinou a espreitar desde o princípio.

Ocorreu-me que aquilo a que ela se referia era o que Dom Juan chamava de caçador. Certamente ele me ensinara a ser caçador. Eu lhe disse que Dom Juan me ensinara a caçar e fazer armadilhas. Porém o uso que ela fazia do termo espreitador era mais preciso.

– Um caçador apenas caça – disse ela. – Um espreitador espreita qualquer coisa, inclusive a si mesmo.

– Como é que ele faz isso?

– Um espreitador impecável pode transformar qualquer coisa em presa. O Nagual me disse que podemos espreitar até as nossas próprias fraquezas.

Parei de escrever e procurei lembrar-me se Dom Juan algum dia me apresentara uma possibilidade tão nova: espreitar as minhas fraquezas. Não me recordava que ele jamais tivesse dito a coisa nesses termos.

– Como é que podemos espreitar nossas fraquezas, Gorda?

– Do mesmo modo que você espreita a caça. Você estuda os seus hábitos até conhecer todos os atos de suas fraquezas e depois salta sobre elas e as pega como coelhos dentro de uma gaiola.

Dom Juan me ensinara a mesma coisa sobre os hábitos, mas no sentido de um princípio geral de que os caçadores devem ter consciência. Porém a compreensão e a aplicação que ela tinha daquilo eram mais pragmáticas do que as minhas. Dom Juan dissera que qualquer hábito era, em essência, um “ato” e que um “ato” precisava de todas as suas partes para poder funcionar. Se faltassem algumas partes, um ato se desmoronava. Por ato ele queria dizer qualquer série coerente e significativa de ações. Em outras palavras, um hábito precisava de todas as suas ações componentes para poder ser uma atividade viva.”

(…)

“Depois a Gorda descreveu como ela espreitara a sua própria fraqueza de comer exageradamente. Disse que o Nagual sugerira que ela primeiro atacasse a parte maior desse hábito, que se ligava ao seu trabalho como lavadeira; ela comia tudo o que os fregueses lhe da­vam, enquanto ia de casa em casa entregando a roupa lavada. Ela es­perava que o Nagual lhe dissesse o que devia fazer, mas ele apenas riu e caçoou dela, dizendo que assim que ele disse para ela fazer alguma coisa, ela havia de lutar para não fazê-lo. Ele disse que os seres humanos são assim; adoram que se diga o que devem fazer, mas adoram mais ainda lutar e não fazer o que se manda, e assim se con­fundem e detestam aquele que lhes falou em primeiro lugar.

Durante muitos anos ela não conseguiu pensar em nada para espreitar sua fraqueza. Mas um dia ela ficou tão farta de ser gorda que se recusou a comer durante 23 dias. Aquele foi o ato inicial que rompeu a sua fixação. Depois ela teve a idéia de meter uma esponja na boca, para fazer os fregueses acreditarem que ela tinha um dente infeccionado e que não podia comer. O subterfúgio deu certo não apenas com os fregueses, que pararam de lhe dar comida, mas tam­bém com ela mesma, pois ela tinha a impressão de estar comendo, ao mastigar a esponja. A Gorda riu ao contar que passou anos com uma esponja metida na boca, até acabar com o hábito de comer demais.

– Foi só isso que você teve de fazer para perder o hábito? – perguntei.

– Não. Também tive de aprender a comer como uma guerreira.

– E como é que uma guerreira come?

– Uma guerreira come com calma e devagar e muito pouco de cada vez. Eu costumava falar enquanto comia e comia muito depressa e uma porção de comida de cada vez. O Nagual me disse que um guerreiro come quatro bocados de comida de cada vez. Um pouco depois ele come mais quatro bocados e assim por diante.
Um guerreiro também caminha vários quilômetros por dia. A minha fraqueza de comer nunca me deixava caminhar. Eu a venci comendo quatro bocados de hora em hora e caminhando. Às vezes eu caminhava o dia inteiro e a noite inteira. Foi assim que perdi a gor­dura nas minhas nádegas.”

(…)

– Mas espreitar as suas fraquezas não é suficiente para perdê­-las – disse ela. – Você pode espreitá-las até o dia do juízo e não vai alterar nada. É por isso que o Nagual não quis me dizer o que fazer.
O que o guerreiro precisa mesmo a fim de ser um espreitador im­pecável é ter um propósito.

A Gorda contou como tinha vivido à-toa antes de conhecer o Nagual, sem nenhum objetivo. Não tinha esperanças, nem sonhos, nem desejo de nada. Porém a oportunidade de comer estava sempre à mão; por algum motivo que ela não sabia explicar, sempre houvera bastante comida para ela, desde que nascera. Tanta mesmo que em certa ocasião ela chegou a pesar 107 quilos.

– Comer era a única coisa de que eu gostava na vida.”

(O Segundo Círculo do Poder, Carlos Castañeda)

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